Eu não gostei do clipe da Beyoncé and I care

Não, não sou um hater - acho que não sou. Já fui em 3 shows da Beyoncé Knowles; vibrei com Homecoming mesmo sabendo que a maior parte já tinha passado no YouTube ao vivo quando o Beychella aconteceu; até tentei ouvir Everything is Love mais do que gostaria para bombar o número de streamings; desejei (mas não comprei) Ivy Park; fingi demência e ignorei quando ela deitou no lugar errado no Super Bowl de 2013.

"Foi de propósito, do que você está falando?!”

"Foi de propósito, do que você está falando?!”

Mas, gente, não deu. Não rolou. Spirit de Beyoncé é muito ruim e vocês sabem disso. Ou existe algo chamado surdez seletiva e eu não me dei conta.

Vou tentar enumerar as minhas questões a respeito aqui e os beyfãs que não queiram me matar, por favor.

#1: a música em si

Essa coisa pasteurizada da Disney não me desce, especialmente porque sei que a Beyoncé é mais que isso. É uma música genérica, parece uma música de Copa do Mundo - sendo que a música de Copa do Mundo da África do Sul era muito mais legal. É tipo uma prima de Reach da Gloria Estefan - sendo que gosto mais de Reach da Gloria Estefan. O começo cantado em suaíle até promete entregar algo, mas depois o coro no refrão vira aquele coro genericão de estúdio, a percussão não vem, a letra é boba, a melodia é boba. Música esquecível total - Beyoncé já fez baladas muito melhores, tipo I Care, Halo, Pretty Hurts, Freedom (que eu nem considero balada mas tem esse tom épico e é de fato poderosa).
E quando chega no agudo? É um agudo tonto, sem clímax, pedido no meio de uma ponte.

#2: a pretensão

Aí o clipe tem Blue Ivy, tem figurino babadeiro; tem fumaça; tem take HD com roupas de franjas (de Hyun Mi Nielsen) e você já imagina alguém dizendo “vai, agora mais movimento, eu quero movimento e dramaaa”; tem citação a Oxum (inclusive com figurino brasileiro, da Maison Alexandrine, show); tem balé contemporâneo. O que parece: ela já fez tudo isso antes e quer igualar esse single de O Rei Leão com as coisas que fez antes. Não dá - o conceito aqui, nessa música bobinha genérica, fica parecendo um terno 5 números maior, um embrulho muito vistoso para um presentinho mequetrefe.

#3: um figurino muito reconhecível…

Não entendi a homenagem à nova versão do longa Suspiria

A marca que criou esses looks vermelhos é a Déviant La Vie - ela fica em Los Angeles e curte essas amarrações à shibari (técnica de amarração japonesa sadomasoquista).

Bom, é isso, estou esperando mais de The Gift - o álbum que Beyoncé deve lançar amanhã. Segue a lista de músicas e participações: sim, a gente quer afrobeat, a gente quer babadeirismos, a gente quer groundbreakinnnnng.

the-gift.jpeg

E para o beyfã que está com raiva: não fique. Ela já tem 10 milhões e meio de views desse clipe chato no YouTube - and counting. Beyoncé não está nem um pouco preocupada com a minha opinião.

A estética do improviso

Não sei se ficou claro, mas existe o que alguns podem considerar crise estética em curso no mundo hoje.
* ALERTA POLÊMICAAA, ELA ESTÁ POLÊMICA HOJEEEE *
Acontece que não considero o que acontece de fato uma crise e sim uma disputa da apropriação de estética improvisada, a estética periférica que se vira com o que tem, uma mistura charmosa e irônica que o hipster adora (e de certa forma estraga) desde 2000 e pouco: sabe aquele boné Texaco, aquela camiseta de campanha política, aqueles óculos de abusador sexual que ninguém usa como Terry Richardson?

Hipster starter pack: qualquer coisa você diz que é uma ironia (e as metidas a cinéfila vão adorar a citação a Nós da camiseta…)

Hipster starter pack: qualquer coisa você diz que é uma ironia (e as metidas a cinéfila vão adorar a citação a Nós da camiseta…)

Porém o hipster não é de direita - salvo Pedro D’Eyrot, que é de direita sim. Quer dizer, tem a direita transante, é assim que eles se chamam? Ai, que vergonha, começo a acreditar na crise estética. Mas NÃO: é uma apropriação, é uma tentativa de ocupação de espaços. Num momento em que o presidente dos EUA usa o mesmo tom de bronzeamento Oompa Loompa de Jersey Shore e o presidente do Brasil (* suspiro *) faz uma coletiva em cima de uma prancha de bodyboard, bem, quer algo mais significativo que a estética do improviso sendo apropriada pelo movimento conservador? Digo, Donald Trump tem dinheiro o bastante para que seu bronzeado fique menos camp, mais David Gandy em uma propaganda da Dolce & Gabbana; Jair Bolsonaro sem dúvida pode conseguir uma mesa de mogno, quiçá mármore, para apoiar microfones em sua coletiva. Tudo leva a crer que as escolhas estéticas deles são intencionais e são montadas para parecerem improvisadas, parecem mais próximas do "gente como a gente".

coletiva-bodyboard-jair-bolsonaro.jpg

Desculpa incluir pessoa com o rosto tão horroroso aqui

É só para ilustrar… Desculpa mais uma vez

Porém não podemos deixar que isso aconteça. A estética do improviso é nossa, e não dessa galera do mal. Assim como o meme feio é nosso. O vaporwave, que eles também querem assimilar, é nosso. E o clipe da MC Loma e as Gêmeas Lacração de Envolvimento (o original) TAMBÉM É NOSSO!

Relembre essa maravilha, dê o play.

O improviso é um estímulo criativo, uma ode à liberdade, um convite à surpresa. Quando uso o termo, que se conecta às manifestações periféricas e portanto ao underground (em contraposição ao mainstream), de maneira alguma injeto carga pejorativa. Ao contrário: esse improviso é poderoso, audacioso, atrevido, o melhor "fazer do limão uma limonada"; bate de frente e por isso é ameaçador, e por isso existe uma tentativa de cooptação, assimilação para eventual anulamento de seu poder. Tenho receio em usar a palavra porque as pessoas podem ler como algo não muito pensado, destrambelhado - mas para o improviso é necessário pensar; o improviso não é o contrário do conceito, ele pode ser conceitual e, quando está na passarela, geralmente é conceitual, é também uma escolha.
Quando falo da estética do improviso, me refiro também a algo em alta agora na passarela mas que tem uma história rica e mágica, que remete ao cinema marginal dos anos 1960 e 1970 de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e tantos outros, desbundado, escrachado e, apesar de à margem, com refrescante apelo pop. Remete também ao punk dos anos 1970, uma estética do it yourself que prenunciava o upcycling antes da existência da palavra. Remete ao exercício de styling encharcado de personalidade de Harajuku e da revista FRUiTS (falei um pouco sobre ela e sobre o bairro japonês nesse post aqui).

Na foto de cima à esquerda, Ângela Carne e Osso, a inimiga nº 1 dos homens, personagem de Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969) de Rogério Sganzerla; na direita, a turma punk na época da loja SEX de Vivienne Westwood (que está na extrema direita …

Na foto de cima à esquerda, Ângela Carne e Osso, a inimiga nº 1 dos homens, personagem de Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969) de Rogério Sganzerla; na direita, a turma punk na época da loja SEX de Vivienne Westwood (que está na extrema direita de camisa), a curiosidade dessa foto é a cantora Chrissie Hynde mostrando o dedo do meio antes de ser a vocalista do Pretenders; na foto de baixo à esquerda, turminha montada de Harajuku

Na entrevista que fiz com Dudu Bertholini na ocasião do desfile da Ahlma na Casa de Criadores, ele comentou sobre esse styling que valoriza a individualidade dentro da diversidade e, de quebra, pega a roupa que já existe e a desconstrói, às vezes customiza mas principalmente a recontextualiza e com isso lhe dá uma nova carga de alta voltagem fashion. Esse é um movimento da moda que já começou com os desfiles da À La Garçonne, com a febre com cara de brechó (mas usando roupas novas) da Gucci de Alessandro Michele - porém esses exemplos são mais, digamos, sem arestas, redondinhos demais para se contaminar com a energia explosiva da improvisação.

Mais exemplos? As propostas da estilista Vicente Perrotta, antes mesmo dela entrar na Casa de Criadores - curiosamente, o desfile dela da última edição do evento não tem tanta carga pós-apocalíptica mas continua seu trabalho incrível de upcycling e de estabelecimento do corpo trans como um corpo que também deve ocupar um espaço na moda, que também é fashion e que, acima de tudo, não precisa engolir estéticas do padrão cis-heteronormativo.

vper_v20_063.JPG

Desfile Transclandestina 3020 de Vicente Perrotta

Poesia na escadaria da Praça das Artes durante a Casa de Criadores. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Falando em CdC, nessa edição que aconteceu há algumas semanas a gente viu exemplos em maior ou menor grau dessa estética, mas numa quantidade sem dúvida elevada. Vai desde o upcycling mais polido da Re-Roupa de Gabriela Mazepa até a P.O.T.E., marca da Estamparia Social que capacita egressos do sistema penitenciário e pessoas em situação de rua no ramo da moda e de personalização de produtos (canecas, cinzeiros etc.). A P.O.T.E. fez desfile intenso unindo forças de gente como o multiartista O Novíssimo Edgar, o estilista Gustavo Silvestre (do incrível Projeto Ponto Firme) e o artista Renan Soares - a apresentação fala sobre a realidade e a dificuldade do preso, a visita íntima, a marginalização de um ser humano mesmo quando ele está cumprindo sua pena e portanto no caminho para uma teórica readmissão na sociedade. Esteticamente esse e outros desfiles se incumbem de mostrar que a diversidade de corpos, etnias e sexualidades também passa pela diversidade humana: cada um é um, e por isso as propostas de moda não deveriam corresponder a essa realidade? Cabe, nessa dinâmica, a padronização e consequente uniformização?

pot_v20_031.JPG

Streetwear com muita personalidade e cor

P.O.T.E. na edição 45 da CdC. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Mas acredito que o exemplo maior da estética do improviso está com as Estileras, que em um dos dias do evento ocuparam um espaço às vistas do público na Praça das Artes e montaram o desfile assim, com todo mundo observando - performance, humor e energia. Entrevistei Ricardo Boni, uma das metadas da Estileras com Brendon Xavier, com a jornalista Giuliana Mesquita (que aliás escreveu textos sobre os desfiles para o site da Casa de Criadores, vai lá prestigiar!). Confira após a foto!

Estileras na 45ª Casa de Criadores: a estreia da dupla no evento. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Estileras na 45ª Casa de Criadores: a estreia da dupla no evento. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Mesquita: Explica para a gente o que é que vocês estão fazendo?
Boni: Estamos apresentando os manuais Estileras, e hoje apresentamos o manual de como apresentar um desfile: montamos nosso backstage fora e expomos o processo. Todas as roupas são de brechó e a gente produz tudo na hora, não fizemos nenhum look antes. Começamos ao meio dia e vamos ficar trabalhando aqui até às 19h, que é o horário do nosso desfile.

Wakabara: Ou seja, é um processo mais de mostrar styling do que fazer roupa?
Boni: Exato.
Mesquita: Mas também estão pintando, fazendo outras coisas…
Boni: Isso. A nossa brisa é se apresentar como a primeira marca de moda do Brasil que não se importa com moda! [Risos] Por isso que a gente abriu nossos bastidores, a gente está fudidamente incerta! [Risos] Também criamos algumas coisas no virtual - se você acessar esses QR codes [impressos e expostos] dá para acessar o perfil de todo mundo que está dentro da performance. Tem umas fotos novas que produzimos para essa ocasião. E se vocês entrarem nos stories do Instagram e procurarem Estileras no gif, tem as estampas que eles estão fazendo em gif! [só para vocês saberem, os gifs continuam lá e são ÓTEMOS, dá uma olhada!]

Wakabara: O que são as Estileras? Se uma pessoa chamar vocês para fazer um projeto, o que vocês vão fazer nesse projeto?
Boni: Somos uma dupla de artistas, eu e a Brendon, que vimos um caminho na moda mas começamos a descobrir que o meio era a mensagem. Então não era simplesmente produzir uma roupa que tivesse signos; a produção deve ser os signos que queremos que sejam comunicados. Por isso queremos mostrar o processo, falar das etapas. Somos artistas tentando resolver os problemas apresentados, tanto para a arte quanto para a moda. Temos o nosso lema que é aquele meme: “a moda quem faz são vocês". É livre, você faz na hora, é para se virar, é para reutilizar, é sobre aproveitar mesmo, aproveitar rasgo... Tudo que aparece de errado você aproveita: uma mancha é uma estampa. Repense tudo. Essa é a nossa posição como artista brasileiro. A precariedade das infraestruturas cria isso, a gente vai ter que aceitar esse erro, a gente vai ter que aceitar esse rasgo para que possamos continuar fazendo. O erro é só mais um caminho a ser seguido. Fiz toda a produção dessa performance e desfile, fizemos o conceito, os textos de divulgação, as fotos. Somos financeiro, administração… [Risos] E propomos outros meios de ver o mundo.

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Mesquita: Vocês vão vender as roupas depois?
Boni: Sim. Temos o patrocínio da Ahlma, eles ajudaram com uma parte do financiamento do projeto e deram total liberdade, foi incrível. Então talvez tenhamos esse caminho mas ainda está tudo indefinido. Ainda não entendemos como as roupas vão ficar para saber como a gente se posiciona com elas [a entrevista foi feita antes do desfile acontecer]. É que a roupa é o final das coisas, e a gente fala mais do processo. Criamos todo esse meio, essa estrutura, para conseguir falar do que queremos.

Mesquita: São quantas pessoas participando?
Boni: 30 no total. Fizemos o look de todo mundo, mas os principais são de 10 pessoas. E eu também queria comentar que para a gente é muito importante a união, de verdade. A coletividade geralmente fica no crédito final, mas para a gente são rostos com links, ninguém é só esse "ao vivo”, temos que explorar isso.

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

E para quem ficou preocupado, bravo ou triste com o conservadorismo querendo se apropriar da estética: fique tranquilo.
Eles são intrinsicamente cafonas. Nós temos a liberdade de sermos cafonas por opção.
<3

essa-noite-se-improvisa.jpg

Scarlett Johansson falou sobre a sua tendência de pegar papéis de minorias - e devia ter ficado quieta...

A gente gosta da ScarJo. De verdade. A gente adora desde O Encantador de Cavalos até Match Point, passando por Ghost World - Aprendendo a Viver (mas, OK, confessemos, a gente prefere Thora Birch em Ghost World). E tem Encontros e Desencontros. E a voz dela em Her. E a Lucy, e a própria Viúva Negra.

Mas aí teve A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell e ela era uma branca fazendo uma personagem em teoria asiática e todo mundo viu e todo mundo ficou meio sem graça, para dizer o mínimo.
Há controvérsias. Ainda mais agora que tem gente reclamando porque a nova Pequena Sereia vai ser Halle Bailey, uma negra. Uma das respostas mais usadas para o povo parar de ser otário é o fato de que as sereias são seres mitológicos portanto não são automaticamente ruivas - sorry, ruivas. Em suma: sereia não existe, é um ser imaginário, então não tem cor de pele certa, taokei? Esse texto da coluna da minha amiga Flavia Gasi fala bastante sobre isso, exemplificando lendas de sereias de diversas partes do mundo, do Japão a Mesopotâmia passando por, adivinha só, o continente africano.

Mas se a gente disser isso, a personagem Mira Killian de Ghost in the Shell, uma ciborgue, era japonesa no desenho original. Mas pode não ser no live action. Ciborgues existem de todas as raças no imaginário, certo?
Ao mesmo tempo, a importância da uma maior representação de minorias no cinema esbarra nisso. Se for para substituir por um branco, não conte comigo para nada; se for para substituir por um não-branco, conte comigo para tudo.

Aqui vemos Scarlett querendo o papel de Pequena Sereia - brincadeira, é ela em Ghost in the Shell

Aqui vemos Scarlett querendo o papel de Pequena Sereia - brincadeira, é ela em Ghost in the Shell

No mesmo caso da Pequena Sereia, parece que a vilã Úrsula vai ser interpretada por Melissa McCarthy. Em Descendentes 2, parte da franquia da Disney que mostra os filhos de vilãos (e de mocinhos também), aparece a filha de Úrsula, Uma, interpretada por uma negra, China Anne McClain - aliás, charmosérrima, uma das melhores atrizes do filme.
Úrsula é negra? Úrsula foi inspirada em uma drag queen famosa, Divine. Úrsula é uma drag queen?
A cantora Lizzo já disse publicamente que queria ser a Úrsula.
#teamLizzo (Melissa, adoro você, acontece)

China Anne McClain como Uma em Descendentes 2

China Anne McClain como Uma em Descendentes 2

Esse post da Variety de 2017 fala sobre a reação da organização Media Action Network for Asian Americans (MANAA) a respeito da ScarJo dizendo que ela "nunca iria se esforçar a interpretar uma pessoa de uma raça diferente, obviamente” no programa Good Morning America na época do lançamento do filme. A resposta da MANAA? “Ela está mentindo". No mesmo post também são citados outros whitewashings como o de Tilda Swinton em Doutor Estranho (o ancião é tibetano nos quadrinhos) e o de Speed Racer (com Emile Hirsch no papel principal).

Essa fama de ScarJo ficou tão, digamos, fétida que virou um meme.
Aí, no ano passado, a atriz foi cancelada (é assim que se diz agora, né?) quando surgiu a notícia que ela iria interpretar o homem trans Tex Gill, que virou uma espécie de mafioso do ramo das massagens nos anos 1970 em Pittsburg e cuja história real ia virar o filme Rub & Tug. Foi tanto backlash que ela saiu do projeto.

E aí veio a entrevista para a revista As If.

“As if I would keep quiet!"

“As if I would keep quiet!"

Sobre tudo isso, Scarlett diz o seguinte na entrevista para a publicação:

You know, as an actor I should be allowed to play any person, or any tree, or any animal because that is my job and the requirements of my job. I feel like it’s a trend in my business and it needs to happen for various social reasons, yet there are times it does get uncomfortable when it affects the art because I feel art should be free of restrictions. I think society would be more connected if we just allowed others to have their own feelings and not expect everyone to feel the way we do.
— Scarlett Johansson para As If

Ó lá a branca fazendo branquice, né?

Vamos começar da infeliz comparação com árvore e bicho - a gente sabe que ela já fez o papel de uma voz criada por inteligência artificial em Her mas, amore, acho que quando você é perguntada sobre representação asiática e trans, é melhor você escolher outras palavras.
Mas, acima de tudo, só faltou ela dizer que cansou de mimimi e que o politicamente correto está matando a arte, né?
Aiai, que morte horrível.

Bom, um representante foi correndo na Entertainment Weekly para tentar corrigir o negócio. Aquele papo: editou por cliques, tirou do contexto patatipatatá. Olha aí o comunicado publicado:

The question I was answering in my conversation with the contemporary artist, David Salle, was about the confrontation between political correctness and art. I personally feel that, in an ideal world, any actor should be able to play anybody and Art, in all forms, should be immune to political correctness. That is the point I was making, albeit didn’t come across that way. I recognize that in reality, there is a wide spread discrepancy amongst my industry that favors Caucasian, cis gendered actors and that not every actor has been given the same opportunities that I have been privileged to. I continue to support, and always have, diversity in every industry and will continue to fight for projects where everyone is included.
— Scarlett Johansson para o Entertainment Weekly

O artigo completo está aqui.

Particularmente não gosto da cultura do cancelamento. Mas também acho que você precisa tomar cuidado com as suas escolhas. Não acho que ela pode falar que tem noção do seu privilégio dibowas, sendo que chegou a aceitar ambos papéis e um deles saiu concretamente (e o outro provavelmente teria saído não fosse o backlash).

E antes que algum nerd bobo venha com graça, uma coisa é uma mulher cis branca fazer um papel de uma asiática ou de um homem trans. Outra é ela fazer o papel de uma russa branca. É bem diferente!

(E isso me lembra a crise da falta de diversidade nas modelos da Victoria's Secret; com a contratação da ruiva Alexina Graham como uma das novas angels de 2019. Ela é a primeira angel ruiva e foi anunciada assim - não estou brincando. Para a Glamour UK, ela disse: “I think for me being a red head VS Angel means I get to put red heads out there more. Being an angel is part of having that media outreach so that I can say to young red head kids, ‘you can do anything you want! Nothing is impossible!" Juro que não estou tirando do contexto, você pode ler o artigo inteiro no link…)

Bom, para finalizar, um pouco dele, o nosso tão maltratado HUMOR:

A maior it girl que o Brasil já conheceu: Lídia Brondi

Tem uma famosa brasileira pela qual sou completamente fissurado - cheguei a citá-la no post sobre Confissões de Adolescente, lembra? É uma mistura de carisma, de interrupção e mistério no auge, da relação entre a fama e a saúde mental, de talento e beleza que são raros de se ver. E conta vários pontos o fato de que a achava estilosérrima, muito cool, a precursora de outras atrizes chiquérrimas como Malu Mader, Claudia Abreu e Andréa Beltrão.
Lídia Brondi tinha até um nome diferentão. Ela era o máximo!

lidia-brondi-playboy.jpg

Lídia nasceu em Campinas e cresceu em Ribeirão Preto. É filha de um professor de sociologia que também é pastor protestante, Jonas Resende, e que gostava de teatro mas nunca se profissionalizou na área. Aos 9 anos mudou pro Rio; aos 14 fez um teste no programa Márcia e Seus Problemas e passou. Aí Boni a procurou para estrear em O Grito (1975), já na Globo, como filha do personagem de Walmor Chagas.

O cabelo, o look: nasce uma estrela. Lídia Brondi como Estela em O Grito (1975)

O cabelo, o look: nasce uma estrela. Lídia Brondi como Estela em O Grito (1975)

Desde o começo, a relação com a fama parece que era meio complicada. Aos 18, na revista Love Story, ela explicava que “o negócio é não deixar o sucesso subir à cabeça, senão eu perco a minha individualidade e passo a ser uma coisa, uma imagem fabricada pela TV.” Aos 17, na Sétimo Céu, ela dizia: “Muitas vezes a gente quer ficar sozinha, e não pode."

Em Dancin’ Days (1978), Lídia recusou o papel de filha de Sonia Braga, que acabou com Gloria Pires. Ela se achava meio velha pro papel, e acabou em outro, interpretando Vera Lúcia. Olha um trecho:

Agora um apanhado de coisas que Lídia já fez na TV, cinema e teatro:

a-ilha-das-cabras.JPG

A Ilha das Cabras (1979)

Especial da série Aplauso, inspirado na peça homônima de Hugo Betti

os-gigantes-lidia-tarcisio-meira.png

Os Gigantes (1979)

Lídia faz o papel da veterinária Renata - aqui com Tarcísio Meira, seu interesse amoroso na novela

baila-comigo.jpg

Baila Comigo (1981)

A personagem Mira

o-beijo-no-asfalto.jpg

Beijo no Asfalto (1981)

No papel de Dália, que é apaixonada pelo cunhado. Não foi a única vez que ela fez uma personagem rodrigueana. Também teve…

perdoamepormetraires.jpg

Perdoa-me por me traíres (1980)

Ela fez Glorinha, personagem que só ajuda a reforçar sua imagem de ninfeta

o-colecionador.jpg

O Colecionador (1983)

Peça na qual contracenou com Ewerton de Castro

lidia-brondi-corpo-santo.jpg

Corpo Santo (1987)

No papel da repórter policial Bárbara, uma incursão na Manchete

radio-pirata-lidia-brondi.jpg

Rádio Pirata (1987)

Um filme deliciosamente jovem precursor de iCarly. Brincadeira, mas quem nunca sonhou em ter uma rádio pirata? Aqui, os motivos são para mobilizar a opinião pública, o que deixa tudo mais, er… sério?

final-feliz-lidia-brondi.jpg

Final Feliz (1982)

Natália do Vale com Lídia em cena

espelho-magico-lidia.jpg

Espelho Mágico (1977)

Tony Ramos com Lídia

lidia-brondi-transas-e-caretas.jpg

Transas e Caretas (1984)

Lídia sairia no meio da trama pois ficou grávida da filha Isadora com o seu então marido na época, o diretor Ricardo Waddington

Aliás, a título de curiosidade: Isadora Frost hoje é artista visual. Olha o Instagram dela!

As minhas maiores lembranças de Lídia Brondi são das últimas novelas que ela fez. Confere aí - Roque Santeiro (1985):

Vale Tudo (1988): a cena mais inesquecível, de Solange com Maria de Fátima, o melhor cabelo, o melhor texto. Maravilhosa. Solange, para quem não lembra, trabalhava como produtora de moda. Tá, meu bem?

ATUALIZAÇÃO: a minha irmã Ana Flavia me lembrou que ela chamava as pessoas de cherrie e isso virou moda, era o more da época! Tá, cherrie? Bring cherrie back!

E mais um tapa, dessa vez de Tieta em Leonora em Tieta (1989):

E a última novela que ela fez, Meu Bem Meu Mal (1990), com esse cabelo incrível que, confesso, já fiz igual.

E aí surgiu a notícia: Lídia foi uma das primeiras famosas que teve a sua condição de sofrer de síndrome do pânico exposta em público. Esse foi o motivo apontado do seu afastamento do mundo das celebridades. Ela negou. Segundo a própria, simplesmente quis abandonar a carreira artística após uma última peça de teatro, Parsifal (1992), e se dedicar a ser psicóloga. A galera ficou doida, claro: como uma atriz tão famosa pode querer deixar isso para trás? Pois é, ela quis. E continuou casada com Cássio Gabus Mendes, que não deixou de ser ator.

Será que ela se arrepende hoje? Espero que não. Acho maravilhosamente punk essa coisa dela ter deixado a carreira no auge, com um gosto de “tudo é possível". Ao mesmo tempo, o que Lídia poderia ter feito se tivesse continuado? Quais papéis seriam dela?

Termino esse post com essa sequência de capas de revista, que é um outro lugar que me lembro de ver Lídia com frequência.

Dor, glória e me, myself and my mother

O filme novo do Pedro Almodóvar faz sentido se a gente pensar nos nossos tempos individualistas, nos quais só se vê selfie e opiniões pessoais nas redes sociais (aliás, só se vê mas quem lê? É para se pensar). Em Cannes Dor e Glória acabou deixado de lado; privilegiaram filmes com fundo mais político. No festival francês quem lacra lucra - os prêmios, ao menos. Mas achei Dor e Glória bem interessante: essa revisão de si mesmo, a releitura mais aprofundada que chega à medida que a idade passa, o autoconhecimento.

dor-e-gloria.jpg

Momento bom para avisar que sim, vai ter spoiler nesse texto. Se você não quiser spoiler, melhor assistir ao filme antes e depois voltar aqui, sim?

Alerta: SPOILER

Estás avisado.

Acho que Almodóvar morre de medo de ser apontado como um cineasta que se repete (e ele brinca com isso nesse longa, com o cineasta Salvador Mallo interpretado por Antonio Banderas falando que se repetiu durante a carreira). Ao mesmo tempo é corajoso e atrevido: consegue mostrar a mesma coisa de filmes anteriores só que de tantos jeitos e com tantos combinações, é um choque. O bloqueio criativo; o ambiente hospitalar; o ambiente doméstico (e especialmente a cozinha); a relação com a mãe; a infância com padres; o vilarejo em contraste com a cidade grande; o encantamento com o corpo nu; o espaço do teatro com plateia; o uso de aditivos; o backstage (a câmera de filmagem, a coxia); a piscina. E deve ter mais um monte de coisa que aparece de novo aqui, “igual mas diferente".

dor-e-gloria-almodovar.jpg

O que se acrescenta, principalmente, são as dores do personagem principal Salvador, a velhice e com isso o corpo não respondendo mais como antigamente. Essa questão de idade já foi retratada antes por Almodóvar mas, que eu me lembre, nunca como tema tão central e de detrimento físico.
Achei um pouco bobo a metáfora do engasgo que, depois da cirurgia, desbloqueia Salvador criativamente. Mas é um bobo que funciona, e realmente acredito que o corpo fala então isso me toca.

Já a referência constante à relação de Salvador com a mãe é tensa e verdadeira. Pedir desculpa por ter se tornado algo que decepciona, por mais que isso fuja ao seu controle, é pesadíssimo, né? Ter a consciência da situação como um todo e mesmo assim pedir desculpa… vixe. Acho que não conseguiria assumir essa posição tão nobre e com tanta humildade, eu hein.

dor-e-gloria-2.jpg

Mas acima de tudo a questão da autoanálise e de revisão aprofundada me parece algo de que estamos precisados. Como chegamos aqui? E como a narrativa se construiu para chegarmos aqui?
Gostei do filme - mas talvez porque estou ficando velho. Não sei se gostaria dele nos meus 25 anos! Risos!

Aproveito o momentinho para fazer uma lista do meu best of de Almodóvar. Ele se baseia mais em gosto pessoal do que em qualidade cinematográfica. Chega mais:

labirinto-das-paixoes.jpg

Labirinto de Paixões (1982)

Aquele filme ótimo para você ver com uns 20, 25 anos; desbundado, descompromissado, camp doidão. Nessa mesma vibe maluquete engraçadona, recomendo também A Mulher de Todos (1969) de Rogério Sganzerla

mulheres-a-beira-de-um-ataque-de-nervos.jpg

Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988)

A apropriação do cinema clássico em uma história melodramática extremamente deliciosa. É uma homenagem ao cinema (como vários outros filmes de Almodóvar também são) cheia de carisma. Com certeza um dos filmes que formou meu gosto!

kika.jpg

Kika (1993)

O augeeee! Ele foi o tema de um dos trabalhos da minha primeira faculdade. Tenho muito carinho por ele! É muito doido simpatizar com esse longa porque ao mesmo tempo é um filme um tanto sexista: a trama vai acontecendo com a personagem principal sem ela ter o menor controle. Kika é uma típica ingênua de Hollywood - mas à moda almodovariana, claro

tudo-sobre-minha-mae.jpg

Tudo sobre minha mãe (1999)

O mais clássico Almodóvar. Quem quiser começar por algum filme a se aprofundar no trabalho do cineasta, eu recomendaria esse para começar. Clichê, né? Mas um belo clichê. Acho um filme lindo, luminoso, sobre perda e recomeço, um pouco também como Dor e Glória sobre pensar no seu passado para refletir sobre o presente.

a-pele-que-habito.jpg

A pele que habito (2011)

Um dos filmes mais doidos de Almodóvar, sobre identidade e vingança. Uma história fascinante, daquelas que te deixam pensando: o que eu faria se estivesse nesse lugar?

É muito injusto fazer listas - deixei filmes que amo demais de fora, como De Salto Alto com a maravilhosa Victoria Abril toda montada de Chanel querendo competir com a mãe Marisa Paredes; o tocante Volver que é meio história de fantasma meio empoderamento feminino; A Lei do Desejo e sua sexualidade que enlouquece; a comunicação entre homens e mulheres em Fale com Ela
Olha, na dúvida, assiste todos, tá?

ATUALIZAÇÃO 25/08/2019: Já faz um tempo que queria incluir esse podcast produzido pelo Nexo para complementar o post, porque achei bem interessante!

ATUALIZAÇÃO 19/09/2019: Agora saiu essa entrevista com Antonio Banderas no Vulture, na qual ele relembra sua carreira desde Labirinto das Paixões! Achei mara!