Mas precisava de desfile?

Escrevi um pouco sobre as possibilidades de reação que teremos a partir da pandemia, especificamente no mundo da moda, na Harper's Bazaar Brasil de abril para a coluna Em Foco. E amei - só que o texto foi feito bem no começo da pandemia, lá em fevereiro.

(Quem quiser ler pode baixar o aplicativo da Harper's Bazaar Brasil no celular, eles estão disponibilizando essa edição de graça!)

De lá pra cá, muita coisa mudou mas o básico segue. Resumidamente:
. Sei da importância da indústria da moda enquanto uma das maiores empregadoras do país, especialmente entre mulheres chefes de família.
. É por isso mesmo que também sei da responsabilidade que a indústria da moda sempre teve. A gente pisou e repisou no assunto até cansar: era necessário mudar o rumo do barco, porque o esquema estrutural da moda (assim como vários outros) simplesmente não é sustentável. E estou falando de sustentabilidade no sentido de se sustentar enquanto máquina que gira, nem preciso entrar na seara da ecologia a princípio: o sistema da indústria não se sustenta porque se baseia em volume cada vez maior de vendas de produtos que saem de recursos finitos. Se o recurso tem fim, quanto mais você o usa, mais perto do fim você vai chegar. Uma bomba-relógio, basicamente.
. Mesmo com esse cenário, a indústria da moda não moveu uma palha para pensar em outras soluções. E ela sabia e sabe a responsabilidade que tem como empregadora. Bom: ela até moveu uma palha ou duas. Produziu mais, agora sob o selo do ecowashing: é ecossustentável, compre! Investiu mais em reciclagem do que em upcycling nos seus processos. A diferença: reciclagem segue gastando mais recursos que o upcycling. Frear o volume cada vez maior? Nem pensar: o lucro seguiu em primeiro lugar.

Então aqui não tem pena nem hashtag. Tem preocupação a respeito dos trabalhadores dessa cadeia, que dependem disso, só que o topo da indústria agora tem que arcar com a responsabilidade de suas escolhas forçada e repentinamente sim. Teve tempo de pensar e mudar com calma - não pensou & não mudou. E ainda deve responder com demissões. É mole?

Sei que é difícil mudar essa lente, enxergar de outro jeito, revolucionar. Mas é o jeito, agora o chamado é bem contundente: quem continuar insistindo naquela outra tecla do passado vai gastar a digital para nada. Na minha opinião, o mercado vai encolher de maneira abissal, e isso não é uma visão pessimista - é realista. Tudo já apontava para isso. Quem não queria ver estava brincando de cabra-cega por opção própria. A insistência em não sair do lugar agora é sua sina.

Violinistas no filme Titanic de 1997

Violinistas no filme Titanic de 1997

Por que a gente gosta da moda? No meu caso, era (e é) pelo que ela tem de aspiracional. O terreno da imaginação, da subjetividade, que se dá tanto na expressão quando você se veste (a roupa fala) quanto na apresentação: a publicidade, os ensaios fotográficos, a arquitetura de decoração das lojas, o site, o Instagram… e sobretudo o desfile.

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Neon primavera-verão 2005/06

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Gucci fall 2019

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Dior couture fall 2004

O que é um desfile? O que o caracteriza?
A passarela, será?
É parte importante, mas nem sempre está lá…

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Sommer inverno 2005

Um dos desfiles mais lindos da carreira de Marcelo Sommer foi apresentado num palco. Os modelos entravam e ficavam fazendo alguma coisa ali no cenário, meio entediados

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Chanel couture fall 2015

O cenário era um cassino, no qual algumas das modelos entravam e iam apostar sua sorte!

Ouso dizer que uma das táticas criativas para o desfile ser mais comentado e lembrado é subverter o conceito de passarela, mudando ou pelo menos acrescentando algo nele. É quando o desfile se aproxima mais do teatro e assim a roupa pode absorver significados assim como um figurino, que assimila características da narrativa.

Uma capa preta de chuva longa e óculos escuros de formato ovalado não queriam dizer ação e realidades paralelas. Aí veio Matrix (1999) e, quando você vê alguém na rua de capa preta de chuva longa e esses óculos escuros, Neo vem à cabeça imediatamente. Esse, claro, é apenas um exemplo entre tantos.

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O desfile tem um alcance relativamente pequeno se comparado a um filme hollywoodiano, mas quanto mais espetacular (e consequentemente caro) ele for, maior seu alcance fica por causa da divulgação.

Bom, então ao menos o desfile precisa de roupa.
Né? A apresentação da roupa caracteriza um desfile.

Será?

No filme Prêt-à-Porter (1994) de Robert Altman tem aquela famosa cena do desfile final, com as modelos entrando na passarela peladas. A ideia já foi reproduzida muitas vezes por diversas marcas e estilistas, com diversas intenções, diversos "graus” de nudez, às vezes só uma mulher nua, às vezes um monte de homens nus segurando bolsas (sério, teve isso). A leitura que me chama mais a atenção é: a nudez também tem um significado nesse contexto, tanto quanto a roupa, e às vezes até maior.
E, mais importante: era tudo desfile. Como você chamaria, a não ser de desfile?

Tem outro exemplo, bem mais próximo de nós.

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Jum Nakao (primavera-verão 2005?)

Acho tão esquisito colocar temporada aqui!

Para começar, até hoje fico meio pasmo porque eu ESTAVA nesse desfile. Podia muito bem não estar (nessa época eu ainda não ia em todos o do SPFW).
Saí achando o máximo - afinal, gosto de uma confusão. E depois as fichas foram caindo.
O impacto de ver algo tão bem feito em papel (misturava kiriê, origami, era uma loucura) de repente rasgado na nossa frente era de uma violência poética que nunca mais foi vista nem antes nem depois no SPFW. Claro que apareceram outros desfiles emocionantes no nosso caminho, mas para mim nenhum teve tantas camadas e subtextos quanto esse do Jum Nakao.
E outra coisa impactante: Jum nunca mais desfilou sua marca. É como se, com aquela apresentação, ele já tivesse dito tudo que podia. Acabou-se. Chega. A história fica muito mais forte porque tem um ponto final.

O desfile tinha roupas - de papel. Elas nunca foram vendidas, e teve gente da plateia que correu para pegar algum pedaço daquilo, jogado no chão. Um lixo. O lixo que virou algo valioso porque, dentro do contexto, a pessoa sabe de onde ele veio. Não é para vestir, não é para usar de alguma maneira. É simplesmente para guardar.
(Não, eu não peguei - e devia ter pegado, me arrependo hoje! Risos!)

Desfiles como símbolo do glamour já não existem mais; e se aparecem só funcionam quando misturam esse revival de glamour com ironia. Algum dia isso irá mudar? Pode ser - tenho evitado fazer previsões nesse momento porque cada mergulho é um flash. Talvez o Átila saiba melhor que eu?

Não me entendam mal, juro que adoro desfile. O que não gosto é de ver algo que não acrescenta. É o direcionamento de energia em algo que talvez não valha a pena. É a proliferação vazia, muito desfile para pouco assunto.

E uma coisa eu sei, assistindo à Saint Laurent anunciar que não faz mais desfile esse ano e dizendo que vai "conduzir seu próprio ritmo" mostrando que está cansada do esquema sazonal das temporadas (quem não está?).
Se você não tem algo para dizer, não diga. Se você não tem algo para mostrar, não mostre. E daí que a "regra do mercado de moda” diz que a marca deve apresentar coleções sazonalmente?
Que mercado?
Que estação? Em que mundo você vive? O aquecimento global não chegou aí?

Se uma solução milagrosa a respeito do modus operandi da moda não vai pintar tão cedo, ao menos vamos pensar em formas diferentes de mostrar sonhos? Sem aglomeração e tão aspiracionais quanto?
Vamos lá, vocês são criativos. Eu sei que vocês conseguem.
O que é o desejo hoje? A importância do papel da imaginação, ao contrário do que possa parecer, é enorme em tempos de pandemia.
E do que a gente precisa?

Enquanto isso, aproveite que você está em casa, talvez saudoso, talvez nostálgico, e ouça o segundo episódio do meu podcast, que é justamente sobre música clichê de passarela! RISOS!

Dei um pivô e fui!

Casa de Criadores: os veteranos e a estreia

Fui no primeiro dia da Casa de Criadores edição 46 e gostei bastante de algumas coisas que eu vi. Vamos a elas?

London calling: Weider Silveiro

Todas as fotos desse post são de Marcelo Soubhia/Fotosite

Todas as fotos desse post são de Marcelo Soubhia/Fotosite

O Weider disputa com o meu marido o posto de pessoa que mais gosta de ir para Londres. A sua nova coleção traz a cidade. Mas de qual Londres a gente está falando? Ele vai brincando: em 20 minutos de backstage citou Camden Town (o bairro boêmio onde vivia Amy Winehouse e onde fica a megaloja da marca-ícone dos ravers Cyberdog), Mayfair (que é o bairro do luxo, onde estão as estadias mais caras de hotel do mundo todo) e Shoreditch (uma das mecas hipsters, tipo um condado de Pinheiros de lá).

Mas então, que Londres é essa, afinal? Parece-me que Weider, não só agora mas sempre, está na constante busca da imagem contemporânea mais fresca, mais deliciosa, mais "quero vestir agora". É por isso que a gente ama Londres: ela significa essa mistura cosmopolita, esse pico de contemporaneidade. Passa Berlim, passa Tóquio, passa NY, mas Londres é sempre uma antena, um hub, uma ideia, nunca deixa esse posto porque, tal qual um marca de luxo, a capital conjuga valores do tipo originalidade, excelência e tradição.

Depois que fomos atravessados por Rei Kawakubo e Miuccia Prada, entendemos que o bonito nem sempre é o mais interessante. É essa a tônica desse frescor contemporâneo, que na passarela internacional de hoje é liderada por Demna Gvasalia na Balenciaga. A imagem urbana de Weider usa estampas mas é quase limpa; se sedimenta nos volumes pequenos (em ombros e golas) ou enormes (na alfaiataria; as calças foram garimpadas em brechós por Marcelona e ganham um upcycling de ajustes na cintura e barras apertadas evidenciando ainda mais o máxi).

Além dessa participação chique de Marcelona, fecham o desfile outras amigas de Weider. São elas: a jornalista e dona da Giu Couture Giuliana Mesquita, the wonderful Johnny Luxo e a estonteante Renata Bastos (que você talvez viu no papel de Roberta Close na cinebiografia da Hebe). Amo essa turma <3

Falando em turma…

Elloanigena Onassis pour Rober Dognani

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Depois da emocionante Nossa Senhora Aparecida do desfile anterior, Dognani vai para os… club kids. A alma clubber esmorece (infelizmente é só abrir o jornal) mas não morre. E dizem as boas línguas que fervo também é luta, então que tal cair na pista, na montação, como se 2000 fosse hoje? O cenário é a porta da A Lôca, sim, a nossa A Lôca, não aquela tentativa de ressurreição; o nosso inferninho eterno onde a gente viu coisas absurdas. E o começo, com os palhaços Bozo voguing ao som de canto lírico, não deixa dúvidas: já vi esse make antes, já vi esse fervo antes… Elloanigena Onassis é a grande homenageada do desfile.

Rober comentou com ela, faz um tempo, que queria fazer uma coleção baseada nela. A bi ferveu, adorou e quis - aí teve a coleção do Rober sobre o Gallery, a sobre os estilistas brasileiros, a da Nossa Senhora, e ela lá sempre perguntando: "Cadê meu desfile???” Agora rolou: o estilista foi na casa dela, viu álbuns de fotos que ela guarda, acervo de roupas. Buscar Elloanigena (e, por consequência, a amiga que também é tudo Zeze Araujo) é prestar atenção em outro tipo de montação paralela ao agora onipresente RuPaul's Drag Race: entraram no vocabulário polished e "arte drag"; espera-se que uma drag grave um disco! Mas a montação de clube já foi (e é, e pode ser) outra coisa, os club kids são outra coisa, o fervo da noite e a criatividade também se encontram em outro lugar onde a ilusão de uma mulher idealizada é menos importante. O corpo é tela, o binarismo é cafona. Sem desmerecer Drag Race, eu adoro, mas existe muito mais coisa na montação do que "fazer um contorno perfeito". A performance não precisa ser no palco. "Existo, logo performo".

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As bocas são feitas uma a uma

Em latex branco e depois, por cima, latex colorido - passando camada, esperando secar, passando mais uma camada, secando…

E é isso que acontece na passarela de Rober, que vira uma fila da boate. Tem a segurança, a hostess (que é a Zeze), o DJ (que é o próprio Zé Pedro, autor da trilha) e outros personagens que são puro fervo tipo Johnny Luxo, Marina Dias, Geanine Marques. Cabeças absurdas (by Davi Ramos), makes absurdos (by Marcos Costa), latex absurdo (by Rober mesmo, feito manualmente no tule). O latex das boquinhas é um babado, o do ovo frito (usado por Bianca Dellafancy) é diversão pura (lembra o trabalho de Lindebergue Fernandes, do Ceará).

Pompoms de mil cores tipo Tomo Koizumi ganham caráter festeiro. E a Skol leva uma divulgação gratuita sem ser patrocinadora nas irreverentes fivelas de glitter com a seta em círculo descendo redondo, uma referência a latinha de cerveja que Elloanigena sempre traz na mão.
Aliás, é ela mesma, claro, quem fecha a apresentação.

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Elloanigena em si

Com a sua latinha!

Escapista, hedonista, mas ao mesmo tempo um ambiente seguro como a Casa costuma ser, mesmo em tempos tão sinistros politicamente. Hoje um desfile desses é pura resistência poética.

Falando em poesia…

Aviso aos navegantes: Cho.Project é tudo

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Isso me lembra aquilo: há muito, muito tempo, nem lembro se era Projeto Lab, apareceu uma menina muito legal com uma coleção bem conceitual e poética. Fora o mérito da própria coleção, que era uma delícia, ela tinha algo no currículo que chamava a atenção. Era da equipe de estilo de Juliana Jabour. O tempo passou, Karin Feller eventualmente saiu da equipe da Ju, deu estofo para a marca própria, exportou, ficou mais comercial sem perder o charme. Hoje ela é diretora criativa da Di Gaspi. Saudades, Karin! <3

E claro, a estreia da Cho na Casa de Criadores lembra a estreia da Karin porque ela vem das mesmas escolas: Santa Marcelina e Ju Jabour. Assim como Karin, que nasceu em Israel, Cho também veio ao mundo em outro país. Ela é da Coreia do Sul, de uma cidade portuária, e uma das suas lembranças desse tempo é o cheiro do mar. Vem daí essa primeira coleção na CdC, que foca na figura do pescador. Cheia de poesia, ela traz muita camisaria, formas distantes do corpo, amarrações. O styling de Alexandre Dornellas é precioso, com redes, tranças longas que se misturam às roupas, ganchos e brincos articulados de Brennheisen. E o casting, quase inteiro formado por não-brancos, traz uma quantidade importante de asiáticos.

Uma roupa chique, imagens de moda fortes. Cho já tem uma ideia firme e consistente da sua marca Cho.Project, e sabe concretizá-la. Muito, muito bom; e muito bem acertada a escolha de já colocá-la direto no line-up sem passagem pelo Projeto Lab.

E vocês, do que gostaram?

O crowdfunding do próximo desfile da Vicente Perrotta!

Os desfiles da Vicente Perrotta são mágicos e fazem parte de algo maior. A estilista, cujo trabalho já acompanho faz um tempinho, não só dá visibilidade ao corpo trans no meio da moda mas também reconstrói o imaginário e procura ícones e referências imagéticas fora da lógica heteronormativa. Admiro demais e sinto que cada apresentação dela carrega uma simbologia que ultrapassa a roupa. Fora tudo isso, Vicente ainda faz um upcycling inventivo, disposto a desestabilizar regras, que também recontextualiza peças: camiseta vira pedaço de um vestido, calça vira blusa, e por aí vai. São imagens modernas, futuristas, contestadoras, herdeiras da cultura punk e do remix.

Portanto é com muito prazer e propriedade que divulgo o novo crowfunding dela para o próximo desfile da Casa de Criadores! Está no Kickante (acesse aqui) e tem diversas faixas de dinheiro e suas correspondentes recompensas! Eu já garanti minha pecinha da Vicente pois não sou bobo nem nada, mas também tem como colaborar e ganhar um top de crochê do Gustavo Silvestre, ou um All Star customizado pelo O Novíssimo Edgar e também, se você tiver só R$ 10, tudo bem: ganha agradecimento no Instagram, Facebook e em um vídeo-documentário.
É importante dizer que, ao ajudar, você não só está colaborando com esse trabalho de moda autoral e artístico mas também viabiliza o trabalho de um grupo grande de pessoas que inclui travestis, trans, não-bináries, profissionais colocados à margem por uma sociedade preconceituosa. E é um trabalho que levanta bandeiras importantíssimas, contra a transfobia, o higienismo social e a favor do fim do preconceito contra HIV positivos.

Imagem do último desfile na Casa de Criadores

Imagem do último desfile na Casa de Criadores

Um resumo do SPFWN48 - sendo que nem fui em todos os desfiles

Primeiro queria dizer que é libertador.
Não ir a todos os desfiles é maravilhoso. Você fica mais descansado, você presta mais atenção no que escolheu. É difícil escolher? É. Mas também fica mais gostoso, e por mais que você possa achar ruim não ter visto uma coisa ou outra, o saldo é positivo.
O clima do SPFW dessa vez estava infinitamente melhor, também. Do tamanho certo, adequado para o tamanho do line-up, num prédio (o Pavilhão das Culturas Brasileiras) que deixa entrar a luz natural, ao redor do verde (no meio do Parque do Ibirapuera). Ufa. Melhor que um caixote todo envelopado por cortinas de veludo vinho pesadas com propagandas agressivas gritando em videomapping, eu hein.

"Mas Jorge, você gosta de tudo, né?"
Não. Eu não gosto de tudo. Mas sim, eu costumo falar mais do que eu gosto. Não só aqui. Na vida também. Só falo de algo que não gosto se acho meu comentário extremamente pertinente.

Ao mesmo tempo, gostei de praticamente tudo que vi: fiz escolhas certeiras, que bom! Alguns desfiles não vi ao vivo mas me pareceram ótimos, como o da Gloria Coelho e o do Apartamento 03. Esse último segue a linha de alguns que, além de mostrar belas roupas, segue a cartilha de que um desfile não é um simples desfile. O marketing de experiência sabe muito bem disso; parece que alguns desfiles se esqueceram. A experiência, a história por trás, tudo isso conta: é um investimento tão grande que você já faz, então vale a pena fazer intersecções, pensar em música ao vivo, algo diferente (e que acrescente, que seja um movimento orgânico e não forçado).
No Apartamento 03, apresentação de butô com João Butoh. Na Handred, Moreno Veloso cantando ao vivo. Na Fernanda Yamamoto, Chico César e o Coral Jovem do Estado de São Paulo comemorando os 10 anos da marca com um exercício intenso de upcycling do acervo acumulado por todo esse tempo. Momentos emocionantes que costuram e dão gás para a moda nacional, que andava carente de emoções positivas.

E falando em experiência, falemos do desfile de Isaac Silva, lógico.
Fui relegado para a fila B mas nem liguei. Aconteceu uma coisa muito maravilhosa nesse desfile do Isaac e que talvez poucos veículos de moda comentem. Só que é histórico. Não só o casting era formado majoritariamente por negros, como já se esperava, mas a sala de desfiles, e também a fila A inclusa, tinha uma maioria negra! Sabe quando isso aconteceu antes? Nunca. Nunquinha. Nem nos desfiles da Lab de Emicida e Fióti essa sensação foi tão clara. Ajuda o fato de que hoje sobreviveram pouquíssimos veículos especializados grandes.
Cada look que entrava, a plateia vibrava. Gritava. Isso só acontece nos desfiles mais animados, tipo os da Neon, que não existe mais, e os da Amapô. A maravilhosa nova turma da Casa de Criadores, que dá energia e vida para aquele evento, chegou de vez ao SPFW.

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Os primeiros dois looks, em crochê

são uma parceria com Samira Carvalho, essa mulher linda que está desfilando. Samira, que é atriz e modelo, também é dona da marca Sambento

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O outro look foi usado pela outra maravilhosa modelo

e uma das melhores amigas de Samira, Carmelita!

Toda a coleção é branca, com um olho no Réveillon (sim, Isaac adora criar mas também adora vender, sempre foi assim!) e outro na sexta-feira, dia de usar branco. Richelieu, malharia, prata justinho, bordado de pedraria e búzios no algodão e a transparência com brilhos, que Isaac chama de céu de Oxalá. Chamada Acredite no seu Axé, expressão que já faz parte do repertório de Isaac desde antes, a coleção foi apresentada rodeada de ramos de arruda e montes de sal grosso - o público podia levar para casa depois do desfile acabar. Axé total! Uma delícia de energia boa.

Vamos falar mais de roupa? Destaco sempre a Aluf de Ana Luisa Fernandes - é emocionante ver o desenvolvimento dela em tempo real, uma moda que já surgiu cheia de personalidade valorizando tecido nacional e sustentabilidade mais design supercriativo. E que só melhora! Dessa vez Fernandes decidiu deixar o processo mais solto, sem muita teoria e overthinking, pincelando imagens para um moodboard que ela achava que tinham a ver com a marca e com suas vontades. Volumes e a inserção de coisas que normalmente ela nunca teria usado, como o xadrez e o pink, são estimulantes e trazem mais variedade para o repertório da marca ainda jovem, sem perder suas características.

O plástico é resultado de um processo de reciclagem de todo o plástico acumulado em um ano de ateliê. São peças de acervo que não vão ser comercializadas. E reparou nos volumes principalmente dos quadris? Isso conversa com aquela história que eu falei no post sobre a coleção do João Pimenta: masculino nos ombros largos, feminino nas ancas largas. Interessante.

Também tem roupa boa na Neriage, cada vez mais leve, na Angela Brito (que também não consegui assistir ao vivo), na Another Place (que apresentou um curta metragem, mais uma vez nessa onda de experiências no lugar de desfile puro e simples, e que se vê cada vez mais sozinha num line-up com menos marcas dedicadas ao streetwear).
Procure saber.
E chega de falar de SPFW! Mais posts em:
. Coisas que pensei vendo a Modem e a Lilly Sarti
. O meu Ceará na passarela da Amapô
. O novo lesbian chic em João Pimenta