O lugar que a gente queria estar lá por volta de 1967 se fôssemos nascidos

Ah, e me desculpa se você já era nascido em 1967: xennial tem mania de achar que tudo gira em torno dele e que todo mundo é da mesma geração que ele.

ENFIM.
Sabe Pinheiros?
Aqui o post que fiz sobre 4 lugares não-hipsters de Pinheiros.
Aqui outro post sobre 3 lojas na Cônego Eugênio Leite em Pinheiros que são hipsters sim - e são legais.
Aqui o post sobre as sorveterias em Pinheiros.

Mas Pinheiros, meu bem, é pouco perto do que era aquilo.

Sabe Harajuku?
Aqui o post sobre Harajuku, o bairro de Tóquio que ficou superfamoso.

Já leu todos esses posts? Pela atenção obrigado, sua audiência é muito importante para nós.

Mas agora eu queria falar de uma rua chamada King's Road lá em Chelsea, Londres, antes de Chelsea virar o bairro de riquinho de hoje, o local onde fica a Saatchi Gallery.
Foi na King's Road, em 1955, que Mary Quant começou a sua aventura. Você sabe, eu já falei de Quant aqui uma ou duas vezes. Na King's Road que Quant abriu sua mítica Bazaar, uma aventura de jovens com vitrines superinovadoras para a época que se transformou num belo negócio.

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A Bazaar era um babado

Moderna, ela antevia a nova atitude da década que chegava: os libertários e tumultuados anos 1960

Tudo começou, na verdade, com um… café. Em 1955, antes da Bazaar, surgia o Fantasie no número 128 da King's Road. Um dos primeiros cafés que serviam espresso em Londres (o pioneiro foi o Moka, de Gina Lollobrigida, na Frith Street), o Fantasie era o lugar para se estar se você era jovem e moderno naquela época. Foi ali que Quant e Alexander Plunkett-Greene, seu futuro marido, decidiram abrir uma boutique na mesma rua. Aberta em novembro, ela gerou um sucesso instantâneo: não tinha mais mercadoria para vender depois de 10 dias! O jeito foi fazer "pão quentinho a toda hora"; Quant criava e vendia, criava e vendia, uma ciranda louca (mais ou menos o que se repetiria em Kensington na Biba de Barbara Hulanicki e Stephen Fitz-Simon 9 anos depois, ali perto).

Não sei se já existia o termo gentrificação, mas os artistas pobrinhos que davam o charme para região tiveram que se mudar para mais longe - mais especificamente para a mesma rua só que mais para frente, em… World's End. Quem sacou, sacou; quem não sacou guarda esse "fim de mundo” que a gente retoma daqui a pouco.

Twiggy na King's Road

Twiggy na King's Road

Chelsea se transformou no lugar mais legal que tinha. Ou já estava destinada a isso? O Royal Court Theatre existia (e existe) ali perto, no Sloane Square. Era um lugar artístico e boêmio. Mas a Bazaar trouxe outra coisa: o fashion.

Ah, e o Chelsea Palace, ali perto, foi vendido mais ou menos nessa época para a Granada Television. Um dos programas gravados ali, o Chelsea at Nine, tem importância histórica. Várias apresentações incríveis, incluindo uma das últimas de Billie Holiday em 1959, antes da cantora morrer de cirrose.

Ao redor da Bazaar surgiram outras lojas. Nenhuma com a mesma projeção internacional de Quant, mas importantes porque fomentaram uma cena dividida com outra ruazinha de Londres que também é o máximo: a Carnaby Street (na época a Carnaby era bem localizada mas com um aluguel mais em conta).

O movimento ia crescendo na King's Road: Kiki Byrne, ex-funcionária de Quant que se transformou em concorrente, abriu loja colada na Bazaar, no número 136. A moda masculina de John Michael apareceu no 170. E a dupla lotada da pequenina Top Gear e a vizinha Countdown pintaram nos números 135a e 137, já em 1964.

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Se você queria comprar uma roupa mara e tinha dinheiro para isso

Era lá que você ia!

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Swinging London

ia chegando ao seu auge!

Em 1967, outra revolução estava chegando. Desde 1965, a Hung on You do aristocrata Michael Rainey chamava atenção no número 22 da Cale Street. Depois, em 1967, a butique de moda masculina mudou para a o número 430 da King's Road, já para os lados do World's End (ou seja, relativamente distante do quadrilátero quente da Bazaar e outras). Ela também desvirtuava o conceito do varejo de mostrar os itens na vitrine para estimular a venda: a Hung on You escondia tudo. Pintava sua vitrine bem colorida. Era o conceito da exclusividade: só quem entrasse saberia (e seria surpreendido) pelo que veria por lá.

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Misteriosa

A Hung on You exigia um conhecimento prévio: de fora nem dava para saber o que era aquilo

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Apontam a mudança da loja, da Cale Street para King's Road, como o começo do fim

A partir do endereço mais "famoso", a Hung on You ia perdendo seu status de exclusividade

O World's End se chama assim e não era à toa. Não existia (e não existe até hoje) metrô na região. Ou você vai de busão, ou você desce numa estação de metrô "meio perto” e anda um tanto para chegar. A Hung on You, ao lado de outras que a gente vai ver a seguir, trouxe a figura do dândi repaginada para os anos 1960: veludo, contas, vintage, motivos étnicos, pelúcia. Tudo entrava na salada. Era o look dos artistas do rock na época (pense nos Beatles na época do Magical Mistery Tour, que não por acaso foi lançado em 1967). Era inventivo, era doido e era o máximo. Mas mais doida ainda era a Granny Takes a Trip!

COLOSSALMENTE COOL: Salman Rushdie, sim, o escritor, sim, ele mesmo, morava em cima da Granny Takes a Trip e é assim que ele descreve a loja no vídeo acima. A psicodelia nas mãos do alfaiate-lenda John Pearse, que usava tecido William Morris de decoração para fazer os paletós e misturava vitoriano e contemporâneo, garantia o ar arrojado. Granny Takes a Trip também ficava em World's End, no número 488 da King's Road, e também fazia da sua vitrine uma tela para artistas. Antes ou depois de Hung on You? Ah, o zeitgeist

Granny Takes a Trip em 1967: a cara de Jean Harlow estilizada & vetorizada

Granny Takes a Trip em 1967: a cara de Jean Harlow estilizada & vetorizada

Portanto a gente fala da nossa mania atual de recorrer ao vintage, dos estilistas voltando nas décadas para criar as modas de hoje, mas na década de 1960 já se fazia isso, e muito. A Biba tinha especial fascinação pelos anos 1920 e 1930. Granny Takes a Trip e Hung on You eram o puro creme do dandismo da virada do século 18 para o 19 - extravagantes, esnobes, mas agora com toques árabes e indianos. Na onda dessas duas, Dandie Fashions era a alternativa mais acessível, tanto em preço quanto em local - King's Road número 161, mais para a Top Gear do que para o World's End.

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Se você quisesse se vestir tal qual Mick Jagger em Their Satanic Majesties Request (1967)

Dandie Fashions era um dos lugares para ir!

Ah, e ali perto ainda rolaria uma outra revoluçãozinha em uma década cheia de revoluções. Ninguém menos que a dupla Ossie Clark & Celia Birtwell na Quorum, que em 1966 mudou para a Radnor Walk número 52, pertinho do fervo da King's Road.

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Look Ossie Clark com estampa Celia Birtwell

Ele era tão ligado à rua que até hoje é chamado de The King of King's Road! A mulher fazia os desenhos da estampa, em uma das parcerias mais prolíficas e famosas da moda britânica

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Ossie Clark em si

na Quorum da sua chefe Alice Pollock

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Twiggy de Ossie Clark

Por que se fala tão pouco de Ossie Clark hoje em dia? É um mistério. O cara foi genial!

Depois da injeção de capital de Al Radley na Quorum, a loja-marca conseguiu ficar mais lucrativa. Eles mudaram para a King's Road em si no seu auge, no número 113, em 1969. Em 1972, com Clark se envolvendo cada vez mais com a marca própria e homônima, a loja fecharia e tudo seria absorvido pela marca Radley (não confundir com a Radley London, de acessórios). Al Radley, aliás, morreu recentemente, em abril de 2019.

Ali por perto, no mesmo bairro de Chelsea, a The Fulham Road Clothes Shop abria no número 160 da, adivinha, Fulham Road. Era a loja de Sylvia Ayton com Zandra Rhodes. Lembra que eu falei da Rhodes aqui? Durou pouco, só até 1969. Mas foi a semente de, adivinha, outra revoluçãozinha - dessa vez de Rhodes em si. Falo mais sobre isso nesse post!

Não posso esquecer de algo que fez a cabeça das mulheres em Chelsea… o salão de Vidal Sassoon, no número 44 da Sloane Street!

Sassoon e Quant <3 A influência no cabelo e a influência na roupa

Sassoon e Quant <3 A influência no cabelo e a influência na roupa

Seguindo em frente…

Em 1968, no mesmo mítico endereço da Hung on You da King's Road (o número 430), abria a Mr Freedom.

Mais doido ainda: Mr Freedom

Mais doido ainda: Mr Freedom

Parecia que aquele endereço da King's Road em World's End estava destinado a ser sempre território da vanguarda da moda. Pop art, glam rock, pastiche da cultura norte-americana, mod. Essa mistura de autoria de Tommy Roberts e Trevor Myles era explosiva e dramática, a Mr Freedom parecia mais um cenário que uma loja. Aos moldes da Biba, eles decidiram sair de lá em 1971 para um endereço maior na Kensington Church Street em 1971.

A Mr Freedom fazia um bom par com a Cobblers to the World, loja de sapatos de Terry de Havilland no número 323 da King's Road, com botas, plataformas, brilhos e píton aberta logo depois, em 1972. O gênio dos calçados malucos fez coisas para pessoas tão diferentes quanto David Bowie, Jackie Kennedy, Rudolf Nureyev e… o personagem de Tim Curry, Dr. Frank-n-Furter, em The Rocky Horror Picture Show (1975)!

Terry de Havilland e suas criações na Cobblers to the World em 1974 - ele morreu no último dia 27/11

Terry de Havilland e suas criações na Cobblers to the World em 1974 - ele morreu no último dia 27/11

I designed most of my shoes on acid, and the opening party for my shop in the King’s Road was famous for the three Cs — champagne, cocaine and caviar. God knows who was there — everybody.
— Terry de Havilland para o The Guardian em 2006
Tim Curry e os sapatos da Cobblers to the World em The Rocky Horror Picture Show

Tim Curry e os sapatos da Cobblers to the World em The Rocky Horror Picture Show

Falando em filme: o Chelsea Girls (1966), longa de Andy Warhol e Paul Morrissey, não tem nada a ver com Chelsea, tá? Ele se liga ao Chelsea Hotel de NY, do outro lado do Atlântico. Na mesma pegada, o álbum Chelsea Girls (1967) de Nico se refere ao filme, no qual ela aparece.

Esclarecimentos feitos, voltemos para ele, sempre ele, esse número 430 da King's Road no World's End.
Trevor Myles, após a aventura da Mr Freedom num lugar maior, retomou esse ponto de origem com a Paradise Garage, loja que seguia mais ou menos a mesma ideia do seu maior sucesso: um cenário divertido, dessa vez bem centrado nos EUA dos anos 1950, muito jeans, meio bar de Louisiana.

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Um paraíso de garagem

Trevor Myles na frente da loja - que realmente tinha uma bomba de gasolina antiga na porta (sem funcionar) e um carro com estampa de tigre estacionado na frente!

Não demorou muito para entrar em cena um dos maiores doidos que o marketing de moda mundial já viu. Malcolm McLaren pegou um pedaço na parte de trás da Paradise Garage com o amigo Patrick Casey e pediu para a mulher, uma tal de Vivienne, fazer umas roupinhas para vender ali.

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Malcolm na frente da Let it Rock, a reencarnação seguinte do local, já sob sua batuta

O endereço do número 430 assumiu um lado sasonal: mudava de tempos em tempos. A Let it Rock já abriu no mesmo ano de 1971, vendendo roupas vintage e novas para Teddy Boys, bem anos 1950

E sim, você entendeu certo: a tal Vivienne era a Vivienne Westwood, que é dona do endereço até hoje!

Seguindo uma linha cada vez mais agressiva, a reencarnação Too Fast to Live Too Young to Die, cada vez mais à moda Westwood, trazia essas misturas doidas em 1972 de colegial com um tema de caveira remetendo à bandeira de pirata. Piratas seriam o tem…

Seguindo uma linha cada vez mais agressiva, a reencarnação Too Fast to Live Too Young to Die, cada vez mais à moda Westwood, trazia essas misturas doidas em 1972 de colegial com um tema de caveira remetendo à bandeira de pirata. Piratas seriam o tema do primeiro desfile de Vivienne em Paris, em 1981!

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Sex, 1974

O rompimento total com os anos 1960: agora a onda era punk. Na nova reencarnação da loja, Westwood misturava sadomasoquismo, fetiche, couro e borracha, correntes. Isso era uma provocação total em pleno Chelsea, imagina?!

Vivienne Westwood na Seditionaires - Clothes for Heroes, mais uma encarnação de loja no mesmo endereço, aberta em 1976: com os Sex Pistols crescendo e virando vitrines ambulantes do estilo punk, cada vez mais gente se atraía. Agora a pegada era mais…

Vivienne Westwood na Seditionaires - Clothes for Heroes, mais uma encarnação de loja no mesmo endereço, aberta em 1976: com os Sex Pistols crescendo e virando vitrines ambulantes do estilo punk, cada vez mais gente se atraía. Agora a pegada era mais política, provocava com slogans e a clássica imagem dos caubóis com os paus encostando: provocativa na representação de nudez, homossexualidade, dando um tapa na cara da burguesia

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Essa aqui

no corpinho de Sid Vicious, do Sex Pistols

Finalmente a última reencarnação, que continua assim de 1980 até hoje: Vivienne Westwood World's End é onde você encontra as peças mais clássicas da estilista, que já foi caminhando para um estilo New Romantic quando percebeu que o punk tinha dado o…

Finalmente a última reencarnação, que continua assim de 1980 até hoje: Vivienne Westwood World's End é onde você encontra as peças mais clássicas da estilista, que já foi caminhando para um estilo New Romantic quando percebeu que o punk tinha dado o que havia de dar

Posso falar só de mais uma?

A BOY!

A BOY!

A BOY ficava no número 153 da King's Road. Stephane Raynor, o fundador, trabalhava na Let it Rock. Abriu a BOY em 1976, que se transformou em point tanto quanto as lojas da dupla McLaren e Westwood. Assim como Chrissie Hynde trabalhou na Sex antes da fama, na BOY você encontrava Billy Idol no caixa!

A BOY conseguiu acompanhar a moda: do punk para o New Romantic (como Westwood), do New Romantic para o clubbing dos anos 1980. A marca voltou em 2007 - você curte? Tenho um certo preconceito bobo, acho que tem cara de marca de skinhead, mas acho que é só comigo, né? Um monte de bilu usa o boné. Enfim! kkkkkk

A King's Road e Chelsea em si continuam sendo tudo isso hoje? Não. Com as consequências da gentrificação (leia-se o aumento do aluguel), o povo mais inventivo vazou. A loja da Vivienne é meio isolada, não tem nada muito interessante ali perto. Acontece. Já a Carnaby Street é um fervo, pertinho da Liberty London. Eu adoro.

A estética do improviso

Não sei se ficou claro, mas existe o que alguns podem considerar crise estética em curso no mundo hoje.
* ALERTA POLÊMICAAA, ELA ESTÁ POLÊMICA HOJEEEE *
Acontece que não considero o que acontece de fato uma crise e sim uma disputa da apropriação de estética improvisada, a estética periférica que se vira com o que tem, uma mistura charmosa e irônica que o hipster adora (e de certa forma estraga) desde 2000 e pouco: sabe aquele boné Texaco, aquela camiseta de campanha política, aqueles óculos de abusador sexual que ninguém usa como Terry Richardson?

Hipster starter pack: qualquer coisa você diz que é uma ironia (e as metidas a cinéfila vão adorar a citação a Nós da camiseta…)

Hipster starter pack: qualquer coisa você diz que é uma ironia (e as metidas a cinéfila vão adorar a citação a Nós da camiseta…)

Porém o hipster não é de direita - salvo Pedro D’Eyrot, que é de direita sim. Quer dizer, tem a direita transante, é assim que eles se chamam? Ai, que vergonha, começo a acreditar na crise estética. Mas NÃO: é uma apropriação, é uma tentativa de ocupação de espaços. Num momento em que o presidente dos EUA usa o mesmo tom de bronzeamento Oompa Loompa de Jersey Shore e o presidente do Brasil (* suspiro *) faz uma coletiva em cima de uma prancha de bodyboard, bem, quer algo mais significativo que a estética do improviso sendo apropriada pelo movimento conservador? Digo, Donald Trump tem dinheiro o bastante para que seu bronzeado fique menos camp, mais David Gandy em uma propaganda da Dolce & Gabbana; Jair Bolsonaro sem dúvida pode conseguir uma mesa de mogno, quiçá mármore, para apoiar microfones em sua coletiva. Tudo leva a crer que as escolhas estéticas deles são intencionais e são montadas para parecerem improvisadas, parecem mais próximas do "gente como a gente".

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Desculpa incluir pessoa com o rosto tão horroroso aqui

É só para ilustrar… Desculpa mais uma vez

Porém não podemos deixar que isso aconteça. A estética do improviso é nossa, e não dessa galera do mal. Assim como o meme feio é nosso. O vaporwave, que eles também querem assimilar, é nosso. E o clipe da MC Loma e as Gêmeas Lacração de Envolvimento (o original) TAMBÉM É NOSSO!

Relembre essa maravilha, dê o play.

O improviso é um estímulo criativo, uma ode à liberdade, um convite à surpresa. Quando uso o termo, que se conecta às manifestações periféricas e portanto ao underground (em contraposição ao mainstream), de maneira alguma injeto carga pejorativa. Ao contrário: esse improviso é poderoso, audacioso, atrevido, o melhor "fazer do limão uma limonada"; bate de frente e por isso é ameaçador, e por isso existe uma tentativa de cooptação, assimilação para eventual anulamento de seu poder. Tenho receio em usar a palavra porque as pessoas podem ler como algo não muito pensado, destrambelhado - mas para o improviso é necessário pensar; o improviso não é o contrário do conceito, ele pode ser conceitual e, quando está na passarela, geralmente é conceitual, é também uma escolha.
Quando falo da estética do improviso, me refiro também a algo em alta agora na passarela mas que tem uma história rica e mágica, que remete ao cinema marginal dos anos 1960 e 1970 de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e tantos outros, desbundado, escrachado e, apesar de à margem, com refrescante apelo pop. Remete também ao punk dos anos 1970, uma estética do it yourself que prenunciava o upcycling antes da existência da palavra. Remete ao exercício de styling encharcado de personalidade de Harajuku e da revista FRUiTS (falei um pouco sobre ela e sobre o bairro japonês nesse post aqui).

Na foto de cima à esquerda, Ângela Carne e Osso, a inimiga nº 1 dos homens, personagem de Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969) de Rogério Sganzerla; na direita, a turma punk na época da loja SEX de Vivienne Westwood (que está na extrema direita …

Na foto de cima à esquerda, Ângela Carne e Osso, a inimiga nº 1 dos homens, personagem de Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969) de Rogério Sganzerla; na direita, a turma punk na época da loja SEX de Vivienne Westwood (que está na extrema direita de camisa), a curiosidade dessa foto é a cantora Chrissie Hynde mostrando o dedo do meio antes de ser a vocalista do Pretenders; na foto de baixo à esquerda, turminha montada de Harajuku

Na entrevista que fiz com Dudu Bertholini na ocasião do desfile da Ahlma na Casa de Criadores, ele comentou sobre esse styling que valoriza a individualidade dentro da diversidade e, de quebra, pega a roupa que já existe e a desconstrói, às vezes customiza mas principalmente a recontextualiza e com isso lhe dá uma nova carga de alta voltagem fashion. Esse é um movimento da moda que já começou com os desfiles da À La Garçonne, com a febre com cara de brechó (mas usando roupas novas) da Gucci de Alessandro Michele - porém esses exemplos são mais, digamos, sem arestas, redondinhos demais para se contaminar com a energia explosiva da improvisação.

Mais exemplos? As propostas da estilista Vicente Perrotta, antes mesmo dela entrar na Casa de Criadores - curiosamente, o desfile dela da última edição do evento não tem tanta carga pós-apocalíptica mas continua seu trabalho incrível de upcycling e de estabelecimento do corpo trans como um corpo que também deve ocupar um espaço na moda, que também é fashion e que, acima de tudo, não precisa engolir estéticas do padrão cis-heteronormativo.

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Desfile Transclandestina 3020 de Vicente Perrotta

Poesia na escadaria da Praça das Artes durante a Casa de Criadores. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Falando em CdC, nessa edição que aconteceu há algumas semanas a gente viu exemplos em maior ou menor grau dessa estética, mas numa quantidade sem dúvida elevada. Vai desde o upcycling mais polido da Re-Roupa de Gabriela Mazepa até a P.O.T.E., marca da Estamparia Social que capacita egressos do sistema penitenciário e pessoas em situação de rua no ramo da moda e de personalização de produtos (canecas, cinzeiros etc.). A P.O.T.E. fez desfile intenso unindo forças de gente como o multiartista O Novíssimo Edgar, o estilista Gustavo Silvestre (do incrível Projeto Ponto Firme) e o artista Renan Soares - a apresentação fala sobre a realidade e a dificuldade do preso, a visita íntima, a marginalização de um ser humano mesmo quando ele está cumprindo sua pena e portanto no caminho para uma teórica readmissão na sociedade. Esteticamente esse e outros desfiles se incumbem de mostrar que a diversidade de corpos, etnias e sexualidades também passa pela diversidade humana: cada um é um, e por isso as propostas de moda não deveriam corresponder a essa realidade? Cabe, nessa dinâmica, a padronização e consequente uniformização?

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Streetwear com muita personalidade e cor

P.O.T.E. na edição 45 da CdC. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Mas acredito que o exemplo maior da estética do improviso está com as Estileras, que em um dos dias do evento ocuparam um espaço às vistas do público na Praça das Artes e montaram o desfile assim, com todo mundo observando - performance, humor e energia. Entrevistei Ricardo Boni, uma das metadas da Estileras com Brendon Xavier, com a jornalista Giuliana Mesquita (que aliás escreveu textos sobre os desfiles para o site da Casa de Criadores, vai lá prestigiar!). Confira após a foto!

Estileras na 45ª Casa de Criadores: a estreia da dupla no evento. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Estileras na 45ª Casa de Criadores: a estreia da dupla no evento. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Mesquita: Explica para a gente o que é que vocês estão fazendo?
Boni: Estamos apresentando os manuais Estileras, e hoje apresentamos o manual de como apresentar um desfile: montamos nosso backstage fora e expomos o processo. Todas as roupas são de brechó e a gente produz tudo na hora, não fizemos nenhum look antes. Começamos ao meio dia e vamos ficar trabalhando aqui até às 19h, que é o horário do nosso desfile.

Wakabara: Ou seja, é um processo mais de mostrar styling do que fazer roupa?
Boni: Exato.
Mesquita: Mas também estão pintando, fazendo outras coisas…
Boni: Isso. A nossa brisa é se apresentar como a primeira marca de moda do Brasil que não se importa com moda! [Risos] Por isso que a gente abriu nossos bastidores, a gente está fudidamente incerta! [Risos] Também criamos algumas coisas no virtual - se você acessar esses QR codes [impressos e expostos] dá para acessar o perfil de todo mundo que está dentro da performance. Tem umas fotos novas que produzimos para essa ocasião. E se vocês entrarem nos stories do Instagram e procurarem Estileras no gif, tem as estampas que eles estão fazendo em gif! [só para vocês saberem, os gifs continuam lá e são ÓTEMOS, dá uma olhada!]

Wakabara: O que são as Estileras? Se uma pessoa chamar vocês para fazer um projeto, o que vocês vão fazer nesse projeto?
Boni: Somos uma dupla de artistas, eu e a Brendon, que vimos um caminho na moda mas começamos a descobrir que o meio era a mensagem. Então não era simplesmente produzir uma roupa que tivesse signos; a produção deve ser os signos que queremos que sejam comunicados. Por isso queremos mostrar o processo, falar das etapas. Somos artistas tentando resolver os problemas apresentados, tanto para a arte quanto para a moda. Temos o nosso lema que é aquele meme: “a moda quem faz são vocês". É livre, você faz na hora, é para se virar, é para reutilizar, é sobre aproveitar mesmo, aproveitar rasgo... Tudo que aparece de errado você aproveita: uma mancha é uma estampa. Repense tudo. Essa é a nossa posição como artista brasileiro. A precariedade das infraestruturas cria isso, a gente vai ter que aceitar esse erro, a gente vai ter que aceitar esse rasgo para que possamos continuar fazendo. O erro é só mais um caminho a ser seguido. Fiz toda a produção dessa performance e desfile, fizemos o conceito, os textos de divulgação, as fotos. Somos financeiro, administração… [Risos] E propomos outros meios de ver o mundo.

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Mesquita: Vocês vão vender as roupas depois?
Boni: Sim. Temos o patrocínio da Ahlma, eles ajudaram com uma parte do financiamento do projeto e deram total liberdade, foi incrível. Então talvez tenhamos esse caminho mas ainda está tudo indefinido. Ainda não entendemos como as roupas vão ficar para saber como a gente se posiciona com elas [a entrevista foi feita antes do desfile acontecer]. É que a roupa é o final das coisas, e a gente fala mais do processo. Criamos todo esse meio, essa estrutura, para conseguir falar do que queremos.

Mesquita: São quantas pessoas participando?
Boni: 30 no total. Fizemos o look de todo mundo, mas os principais são de 10 pessoas. E eu também queria comentar que para a gente é muito importante a união, de verdade. A coletividade geralmente fica no crédito final, mas para a gente são rostos com links, ninguém é só esse "ao vivo”, temos que explorar isso.

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

E para quem ficou preocupado, bravo ou triste com o conservadorismo querendo se apropriar da estética: fique tranquilo.
Eles são intrinsicamente cafonas. Nós temos a liberdade de sermos cafonas por opção.
<3

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