Susana Estrada, a Gretchen espanhola que veio antes da Gretchen

Você conhece?

Susana Estrada ficou famosa já em 1976, logo depois da morte do general Franco, responsável pela ditadura moralista que assolou a Espanha. Era uma época que Madri fervia: a capital queria recuperar o tempo perdido, sabe como é. Foi mais ou menos nessa época que rolou a Movida Madrileña da qual gente como Pedro Almodóvar, a cantora Alaska e a estilista Agatha Ruiz de la Prada são expoentes. Mas Susana era outra história. Era mais mainstream. E ao mesmo tempo era sexy como ninguém tinha ousado antes.
Historias de Strip-Tease, um espetáculo teatral, trazia Estrada fazendo exatamente o contrário que Rita Hayworth fez em Gilda, filme de 1946. Se Rita fez um strip-tease tirando apenas as luvas…

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… Estrada tirava TU-DO no palco. Menos… as luvas!

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Um tanto desinibida

É verdade…

Bom, Franco tinha morrido mas a Espanha continuava moralista: então imagina, né?
Mas o que era mais incrível era o discurso de Susana. Ela dizia que tirava a roupa porque curtia mesmo, e que a igualdade de gêneros passava pela liberdade sexual. Tá, meu bem?
A artista gostava mesmo duma confusão no palco: simula sexo com um robô em 1979, se masturba em 1981, usa uma cinta-caralha em 1987 (de verdade, usa mesmo, para comer um dos bailarinos!).

O caráter político de sua sensualidade desinibida que até hoje desperta rubor e críticas é confirmado quando ela ganha o prêmio de Personalidade do Ano do jornal Pueblo em 1978. Recebeu-o das mãos de Tierno Galván, prefeito de Madri. E o peito pulou para fora, segundo ela sem querer, naquele exato momento. Bom, a blusa era bem aberta. E ela também não fez muito esforço para cobri-lo, para alegria dos fotógrafos presentes. A lenda popular é que Galván teria dito: "Menina, se cobre, vai se constipar". kkkkk Mas segundo a própria Estrada, ele disse “Fica tranquila, filhinha, mas se cobre” e ela respondeu “Estou muito tranquila, professor" - segundo entrevista para a Vanity Fair espanhola.
A foto virou um símbolo. Esse peito aberto significava também a abertura pós-regime militar.
Acabaram tirando o passaporte de Estrada até 1987, proibindo-a de viajar para fora do país e de votar. Foi condenada pelo delito de escândalo público. Chegou a ter guarda-costas já em 1976 porque temia pela segurança.

Antes las feministas me ponían a parir porque una mujer que es un símbolo sexual, para ellas es una mujer objeto. Sin embargo, hoy en día ellas mismas recurren al desnudo para protestar. A mí no me importa lo que representes o la imagen con la que te vea la gente, sino cómo y por qué estás haciendo esa lucha. Muy mal no lo hecho, sino no estaríamos hablando de esto. Estábamos a años luz la sociedad de aquel momento y yo. El sentido del humor me ha salvado mucho.
— Susana Estrada para 20 Minutos

A entrevista toda de onde saiu a frase de cima está nesse link. Na ocasião, em 2017, estava sendo lançada uma coletânea com as músicas de Susana. Vem ouvir:

Destaque para a última música: sim. Un Sitio Bajo El Sol é uma canção que fala de um gay. "Solo los muchachos despiertan tu pasión, muchachos que conocen la forma de tu amor, la fuerza de tus brazos, lo dulce de tu voz, la piel de tus caderas, tus nalgas en tensión, el bosque de tu vientre, tu boca tu sabor!" Ui!

Para terminar, um videozinho com várias imagens de Susana:

E um de 1977 também com ela sendo entrevistada:

Buonasera Raffaella Carrà!

Você acha que o penúltimo melhor disco da Madonna é o Confessions on a Dance Floor? E o último melhor é o último mesmo, Madame X? Parabéns, você concorda com 99% dos críticos de música.
Sinceramente acho que o Rebel Heart tinha tudo para ser maravilhoso mas se perdeu na produção. A versão vazada da música que deu título ao álbum, por exemplo, é bem melhor do que a que foi lançada, meio ABBA, pop safado, bem delicioso.
Mas não é por causa disso que estou fazendo esse post, eu queria falar é do Confessions mesmo e da era disco music da Madonna.
A gente sabe que no clipe de Deeper and Deeper ela pensou em Marlene Dietrich em A Vênus Loura, que em Material Girl ela pensou em Marilyn Monroe no número Diamonds are a Girl's Best Friend de Os Homens Preferem as Loiras, Papa Don't Preach tem um arzinho de Jean Seberg em Acossado e Express Yourself tem algo, de novo, da androginia de Marlene Dietrich com o cenário de Metropolis de Fritz Lang.
Mas e Confessions, hein?

"Ah, é meio oitentaaaa… meio vídeo de ginásticaaaa… meio assim disco, né???"

Bom, você já viu o clipe de Rumore de Raffaella Carrà? Tem vários, na verdade, mas é desse aqui que eu tô falando:

Você não conhecia a Raffaella?
Ah, eu sei. Pois é, você acabou de encontrar sua nova música preferida.
Vou te dar um tempinho para você se recuperar.



Algo me diz que Madonna já conhecia Raffaella e a tinha como referência mesmo antes de Confessions. O clipe de Ray of Light tem algo desse clipe de Rumore: o chroma key, a dança meio frenética meio esquisita meio de corpo inteiro.

Mas chega de Madonna.
Raffaella começou sua carreira como atriz. Mas muito cedo também já cantava e dançava na maravilhosa TV italiana - e ficou bem famosa justamente nesse meio. Para quem não tem muita noção de TV italiana, recomendo um dia inteiro de RAI e o filme Ginger & Fred de Federico Fellini, que traz Giulietta Masina e Marcello Mastroianni como um casal que fazia cover de Ginger Rogers e Fred Astaire no passado e vão dançar como eles mais uma vez, já mais velhos, em um programa de TV.

Rumore nem é o maior hit de Raffaella. Ela é mais conhecida por músicas como Tanti Auguri (que eu acho meio farofa demais, então é bom ouvir em pequenas doses) e Far l’Amore (que está na trilha do filme A Grande Beleza de 2013). Inclusive, essa segunda é a única que foi sucesso em inglês - a versão se chama Do It Do It Again. Não chega a ter o charme de Rumore.

Depois do sucesso italiano, Raffaella mudou para Espanha. Também fez sucesso. Aí foi para Buenos Aires. Sucesso de novo. É por isso que ela é bem conhecida na Argentina e na Europa como um todo.
Em 2018, rolou uma exposição sobre os figurinos de Raffaella, colocando-a como ícone de estilo, na Itália. Veja o vídeo da Rai no link.

E uma coisa é inegável: assim como Madonna, Raffaella dança muitoooo!

Bom, se você precisa de mais motivos para gostar de Raffaella, vou enumerar alguns aqui.

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Ela sempre vota no comunista!

Revista Interview, versão espanhola, de 1977, número 55. Ela declara: "Siempre voto comunista". Tá, meu bem? Vermelhou!

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Ela escandalizou o papa antes de Madonna!

A sua dancinha Tuca Tuca, na qual o par fica pegando em partes um do outro (dá uma olhadinha no vídeo abaixo), teria deixado o papa escandalizado em seu lançamento, em 1971. Quem era o papa em 1971? Paulo 6º. Você sabe, na Itália essa coisa de papa é coisa bem séria. Bom, no Brasil também era, né?

Na passagem da turnê MDNA de 2012 por Florença, Madonna, mais uma vez ela, homenageia Carrà fazendo o Tuca Tuca durante o medley de Candy Shop e Erotica.

O babado do cropped

Diz que Raffaella foi a primeira a mostrar o umbiguinho na TV italiana. Não só isso - ela adorava mostrar o umbigo! Cropped para ela era tudo. Várias artistas também curtiam essa coisa da barriga de fora, por exemplo a Cher. Nesse vídeo abaixo tem a artista mostrando o umbigo no Milleluci, programa no qual ela dividia a apresentação com outro ícone: Mina. Existiram rumores de uma possível rivalidade nos bastidores; mas também dizem que Mina quis dar mais espaço para Raffaella. No que acreditar? Sei lá!

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Raffaella e Mina

no programa Milleluci, de 1974

A versão de Roberto e Erasmo Carlos!

Gente!!!

Uma versão de Cama e Mesa em italiano com Raffaella. O que mais queremos?
Sim, queremos mais: Raffaella cantando em português. Música de Jorge Ben, coisas assim.

E mais um vai, dela cantando o mesmo medley com Samba de uma Nota Só em italiano no começo:

Pedro Almodóvar disse que Raffaella Carrà não é uma mulher e sim um estilo

Aguardando ansioso pelo filme, amore!

É muito provável que ela tenha sido a inspiração de várias crianças viadas

Porque, afinal, imagina você criança ligar a TV em 1983 e dar de cara com isso:

A dublagem e a coreô certamente vão acontecer.
Melhor que Xuxa!

Remixadah

Para quem gosta de música eletrônica e remixes, Bob Sinclar fez umas coisinhas com as músicas de Carrà em 2011. Não gosto muito da versão de Far L’Amore, que veio na esteira do filme A Grande Beleza - se for para escolher, prefiro Forte.

Mas a original ainda é melhor, um baladão sexy cheio de climão italiano. Aliás, se alguém quiser me dar esse vinil…

Estou aceitando

Estou aceitando

Ícone gay sim

Raffaella já cantava sobre homossexualidade nos anos 1970. Lucas era o nome dele…

Um velho amigo? Ih, Lucas, onde você se meteu? Nunca vou saber…

Bom, Raffaella acabou coroada rainha do World Pride em Madri em 2017. Depois, declarou em entrevista:

Al recibirlo dije: Viva esta semana con alegría, pero las luchas no han terminado. Todavía hay que ‘hacer mucho fuego’ para romper prejuicios. Tendremos éxito. Mi frase favorita dice: ‘Puedes quitar todas las flores, pero no puedes quitar la primavera’
— Raffaella Carrà

Masturbação feminina

Antes de I Touch Myself de Divinyls; de Sexxx Dreams de Lady Gaga; de She Bop de Cyndi Lauper.
Ouve direitinho antes de achar que é uma mulher desesperada no telefone…
"Mi dedo está enrojecido de tanto marcar, se mueve solo, sobre mi cuerpo, y marca sin parar: 5-3 /5-3/ 4-5-6. Ya no vengas, que aquí no hay nada que hacer. Sin ti aprendí que hay muchas formas de poder vivir"

Rainha modesta

Veo a Madonna o a Lady Gaga y muchas veces me reconozco en ellas. La que me gusta mucho es Shakira. Me vuelve loca. Yo comencé antes, pero tengo más años y soy menos atrevida.
— Raffaella Carrá para a Vanity Fair espanhola

Essa entrevista é mara, aliás.

Para terminar, um vídeo de Raffaella… e Madonna.

É loucura minha ou a poderosa Madonna está ligeiramente nervosa?
Pode ser só viagem… mas sei lá…
Arrivederci!

Dor, glória e me, myself and my mother

O filme novo do Pedro Almodóvar faz sentido se a gente pensar nos nossos tempos individualistas, nos quais só se vê selfie e opiniões pessoais nas redes sociais (aliás, só se vê mas quem lê? É para se pensar). Em Cannes Dor e Glória acabou deixado de lado; privilegiaram filmes com fundo mais político. No festival francês quem lacra lucra - os prêmios, ao menos. Mas achei Dor e Glória bem interessante: essa revisão de si mesmo, a releitura mais aprofundada que chega à medida que a idade passa, o autoconhecimento.

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Momento bom para avisar que sim, vai ter spoiler nesse texto. Se você não quiser spoiler, melhor assistir ao filme antes e depois voltar aqui, sim?

Alerta: SPOILER

Estás avisado.

Acho que Almodóvar morre de medo de ser apontado como um cineasta que se repete (e ele brinca com isso nesse longa, com o cineasta Salvador Mallo interpretado por Antonio Banderas falando que se repetiu durante a carreira). Ao mesmo tempo é corajoso e atrevido: consegue mostrar a mesma coisa de filmes anteriores só que de tantos jeitos e com tantos combinações, é um choque. O bloqueio criativo; o ambiente hospitalar; o ambiente doméstico (e especialmente a cozinha); a relação com a mãe; a infância com padres; o vilarejo em contraste com a cidade grande; o encantamento com o corpo nu; o espaço do teatro com plateia; o uso de aditivos; o backstage (a câmera de filmagem, a coxia); a piscina. E deve ter mais um monte de coisa que aparece de novo aqui, “igual mas diferente".

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O que se acrescenta, principalmente, são as dores do personagem principal Salvador, a velhice e com isso o corpo não respondendo mais como antigamente. Essa questão de idade já foi retratada antes por Almodóvar mas, que eu me lembre, nunca como tema tão central e de detrimento físico.
Achei um pouco bobo a metáfora do engasgo que, depois da cirurgia, desbloqueia Salvador criativamente. Mas é um bobo que funciona, e realmente acredito que o corpo fala então isso me toca.

Já a referência constante à relação de Salvador com a mãe é tensa e verdadeira. Pedir desculpa por ter se tornado algo que decepciona, por mais que isso fuja ao seu controle, é pesadíssimo, né? Ter a consciência da situação como um todo e mesmo assim pedir desculpa… vixe. Acho que não conseguiria assumir essa posição tão nobre e com tanta humildade, eu hein.

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Mas acima de tudo a questão da autoanálise e de revisão aprofundada me parece algo de que estamos precisados. Como chegamos aqui? E como a narrativa se construiu para chegarmos aqui?
Gostei do filme - mas talvez porque estou ficando velho. Não sei se gostaria dele nos meus 25 anos! Risos!

Aproveito o momentinho para fazer uma lista do meu best of de Almodóvar. Ele se baseia mais em gosto pessoal do que em qualidade cinematográfica. Chega mais:

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Labirinto de Paixões (1982)

Aquele filme ótimo para você ver com uns 20, 25 anos; desbundado, descompromissado, camp doidão. Nessa mesma vibe maluquete engraçadona, recomendo também A Mulher de Todos (1969) de Rogério Sganzerla

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Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988)

A apropriação do cinema clássico em uma história melodramática extremamente deliciosa. É uma homenagem ao cinema (como vários outros filmes de Almodóvar também são) cheia de carisma. Com certeza um dos filmes que formou meu gosto!

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Kika (1993)

O augeeee! Ele foi o tema de um dos trabalhos da minha primeira faculdade. Tenho muito carinho por ele! É muito doido simpatizar com esse longa porque ao mesmo tempo é um filme um tanto sexista: a trama vai acontecendo com a personagem principal sem ela ter o menor controle. Kika é uma típica ingênua de Hollywood - mas à moda almodovariana, claro

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Tudo sobre minha mãe (1999)

O mais clássico Almodóvar. Quem quiser começar por algum filme a se aprofundar no trabalho do cineasta, eu recomendaria esse para começar. Clichê, né? Mas um belo clichê. Acho um filme lindo, luminoso, sobre perda e recomeço, um pouco também como Dor e Glória sobre pensar no seu passado para refletir sobre o presente.

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A pele que habito (2011)

Um dos filmes mais doidos de Almodóvar, sobre identidade e vingança. Uma história fascinante, daquelas que te deixam pensando: o que eu faria se estivesse nesse lugar?

É muito injusto fazer listas - deixei filmes que amo demais de fora, como De Salto Alto com a maravilhosa Victoria Abril toda montada de Chanel querendo competir com a mãe Marisa Paredes; o tocante Volver que é meio história de fantasma meio empoderamento feminino; A Lei do Desejo e sua sexualidade que enlouquece; a comunicação entre homens e mulheres em Fale com Ela
Olha, na dúvida, assiste todos, tá?

ATUALIZAÇÃO 25/08/2019: Já faz um tempo que queria incluir esse podcast produzido pelo Nexo para complementar o post, porque achei bem interessante!

ATUALIZAÇÃO 19/09/2019: Agora saiu essa entrevista com Antonio Banderas no Vulture, na qual ele relembra sua carreira desde Labirinto das Paixões! Achei mara!