Sucesso é volume, e esse valor devia ser alterado
Quem já assistiu a Hollywood? A série que estreou faz pouco tempo na Netflix é criação de Ryan Murphy e traz uma fantasia interessante, uma coisa parecida com o que Quentin Tarantino fez em Era uma Vez em… Hollywood mas com um final mais poderoso em significado.
Enquanto Era uma Vez em… Hollywood se centra em um momento que muitos apontam como um marco do fim do sonho e da inocência americanos (a família Manson e o assassinato de Sharon Tate), Hollywood é um pouco mais ampla: mostra a falta de representatividade étnica e sexual hollywoodiana e sua conivência com o preconceito. Ademais, dá exemplos concretos: o racismo que Hattie McDaniel sofreu ao ser a primeira negra a ganhar o Oscar em 1940. A injustiça e o silenciamento impostos à primeira estrela amarela de Hollywood, Anna May Wong. A anulação pública total da sexualidade de Rock Hudson durante toda a vida do astro em prol de seu sucesso.
Em comum, as duas obras "mudam a história": fazem uma fábula, criam um novo universo paralelo onde as coisas tomariam outro rumo.
Mais instigante ainda: nenhuma das duas ousa fazer um fast forward depois do what if, como se quisessem guardar aquela fantasia em uma caixinha preciosa. É a manutenção do sonho hollywoodiano, uma manifestação ingênua e impossível de desejos - já aconteceu de outra forma, e não existe máquina do tempo. Quem saberia o que aconteceu depois dessa mudança de rumo? O mundo ficou tão igualitário que virou comunista?! Risos!
Tomemos o exemplo de Anna May Wong: a indústria não lhe deu um papel de protagonista que ela queria. Ele acabou indo para a branca Luise Rainer, que fez yellow face ao encarnar a personagem O-lan em Terra dos Deuses (1937) e ganhou o Oscar por seu desempenho.
Entendo a importância da premiação da indústria. Mas é justamente por causa da não-relativização dessa importância que Wong é apontada mais como vítima da discriminação do que como a primeira grande atriz amarela de Hollywood.
Hollywood, a cidade, e a indústria cultural no geral funcionam com essas medidas de sucesso: premiação. Audiência. Número de seguidores. Números da bilheteria. Top 10.
Hollywood é uma graça, seu efeito é dar uma aquecida no coração. Um convite ao sonho, ao otimismo - e eu arriscaria dizer que a série funciona ainda mais por causa do momento atual de pandemia, no qual a gente está implorando por qualquer coisa que nos deixe esquecer a realidade de um presidente horroroso e de gente que valoriza mais a economia ou o seu conforto egoísta do que vidas humanas.
Mas ao medir o sucesso e a fama do mesmo jeito que continuamos medindo hoje, Hollywood é conivente. Não quebra regras, não hackeia. É subserviente ao sistema cruel que mede a fama desse jeito, que se nivela por baixo. Que é covarde porque também depende da opinião e consequente audiência de gente burra.
(E eu, especialmente nesses dias, estou doidinho para criticar antigos sistemas e estruturas… hihihihihi)
Let me tell you a story.
Adriana Esteves já foi CANCELADA pela sua pretensa FALTA DE TALENTO - lembrei do caso em um tweet de hoje:
Foi um massacre. Um dos piores casos de cancelamento pré-internet. Era um papel ruinzinho, e realmente ela não mandou bem, mas os críticos mandaram pior. Não a respeitaram enquanto artista recém-chegada naquele mundo de globais e tacaram lenha, dizendo que ela não tinha futuro.
Sim, Adriana Esteves, que depois apareceu em O Cravo e a Rosa (2000) e em Avenida Brasil (2012).
Imagina você ter um sonho e todos os ditos especialistas de repente informarem aos jornais: "Nah! Pode desistir!” baseados em seu desempenho em uma novela das oito, o conceito mais mainstream de entretenimento do Brasil, quando você ainda está no seu, sei lá, terceiro papel importante? Alguns anos depois de você ganhar um concurso no Faustão (sim, foi assim) e entrar para a carreira de atriz?
Adriana foi convidada na época por Carlos Lombardi para participar de Quatro por Quatro (1994) no papel de Babalu. Não conseguiu dar conta por causa da depressão mas não esqueceu do autor, um dos únicos a lhe dar uma oportunidade naquele momento difícil, e depois entrou em outra trama dele, Kubanacan (2003). Letícia Spiller arrasou como Babalu mas Adriana também o teria feito - a personagem era meio parecida com a Sandrinha de Torre de Babel (1998). Para os que não são ateus, é um daqueles casos em que Deus escreve certo por linhas tortas: tivemos a ótima Babalu de Letícia Spiller e a ótima Sandrinha de Adriana Esteves.
Mas a que custo? Lembro que esse questionamento do talento da atriz ficou tão forte para mim que quando foi anunciado A Indomada (1997) com ela como protagonista, na minha cabeça (eu tinha 16 anos) aquela novela tinha tudo para flopar. Um horror. Adriana Esteves conseguiu se reestabelecer e hoje é considerada uma das melhores atrizes de novela da Globo - o mundo gira. E a responsabilidade da crítica não está só na mão do especialista mas na mão dessa entidade INTERNET, um monte de usuários sem rosto que critica quem quiser, a hora que quiser, quanto quiser e sem medir consequências. Adriana Esteves poderia ter desistido de ser atriz em 1993.
No mundo dos influenciadores digitais, que seria um passo além desse da indústria do entretenimento, já se popularizou a palavra “engajamento". O que ela quer dizer? Não basta (e às vezes não importa) o número de seguidores e de curtidas: a medida mais importante é a quantidade e qualidade de comentários. Aquele influenciador é capaz de iniciar uma conversa? De mobilizar uma comunidade ao redor de um assunto?
As medidas de sucesso começam a se relativizar. É mais importante ser o filme de maior bilheteria ou o filme que despertou uma questão, que chamou a atenção para um ponto importante, que deu à sociedade algo para ela discutir?
Claro: se não tem bilheteria, não tem conversa. Não adianta ser um filme bom e ninguém saber. Mas me parece que a Netflix e outros serviços de streaming, com sua oferta tão abundante que chega a ser intimidadora, também começam, aos pouquinhos, a mudar esses parâmetros de sucesso ao simplesmente não revelar seus números. Acho uma ótima estratégia. Com tantas opções na nossa mão, será que é mais importante o número? Digo mais: com a possibilidade de impulsionamento de posts, qual é o real critério?
E voltando à Hollywood: vale a pena assistir sim. O fim é bem, mas bem forçado. Só que é fofo. É hollywoodiano. Uma mentira bem contada, quem sabe, às vezes vira uma meia-verdade.
Bom lembrar: tudo o que Hollywood enaltece a respeito de representatividade é um grande cocozão em Era uma Vez em… Hollywood. Leia meu texto sobre como Tarantino foi cretino no retrato de Bruce Lee aqui.
Hollywood faz algo parecido com outro personagem histórico: Rock Hudson, o ator que passou a vida inteira no armário. Ele é retratado como um bobão gostosão, um pouquinho mais humano que o retrato de Tarantino para Lee mas mesmo assim pouco lisonjeiro.
Bom… Hudson era um gay padrão, branco e fortão. Sinceramente: eles que lutem.