A canção de protesto portuguesa contra a energia nuclear

Quem acompanha o blog já deve ter reparado que estou com certa fixação pelo pop português (aqui, aqui, aqui, aqui). E também pode ser que saiba que eu já fui para Chernobil, antes da série da HBO, para ver de perto as consequências de uma tragédia envolvendo energia nuclear.
Então esse post vai unir ambas as coisas via Lena d'Água, cantora portuguesa que é filha de um jogador de futebol bem famoso chamado José Águas que foi do Sport Lisboa e do Benfica.
Em 1982, no seu álbum Perto de Ti, a primeira faixa é essa:

Pelo que entendi, a música foi uma reação a uma tentativa de instalação de uma usina nuclear em alguma região de Portugal. O acidente de Chernobil só aconteceria em 1986.

A música diz coisas como:
Nuclear não, obrigado
Antes ser activo hoje
do que radioactivo amanhã
Nuclear não, obrigado

Se queremos energia
sem envenenar o ar
Temos o calor do sol
o vento e a força do mar


Isso me faz lembrar que os ucranianos, ou pelo menos a guia que era responsável pelo tour que fiz em Chernobil, garantia que a energia nuclear era uma energia limpa e segura, mesmo com toda a história do acidente nuclear. Como se a tragédia tivesse sido um fato isolado, e que reatores nucleares continuam sendo a melhor solução.
Oh, well…
No Brasil, sou um defensor (não tão vocal e ativista, mas sou) da energia eólica e solar, coisas que o país tem de sobra; e acho que precisamos-devemos investir mais nessas tecnologias.

Bom, Lena é uma personagem superinteressante, então vou falar um pouco mais sobre ela nesse post, com licença!

lena-dagua.jpg

Do mesmo jeito que tivemos, no Brasil, a desbravadora Rita Lee, mulher à frente de banda de rock, Portugal teve Lena. Do fim dos anos 1970 para toda a década de 1980, Lena teve uma constante presença na cena da música popular portuguesa. Nos anos 1990, ela partiria para um caminho mais, digamos, mainstream? E talvez menos autoral, pelo menos na minha visão de quem acabou de conhecer o trabalho dela.
Lena tem uma ligação forte com duas cantoras: Billie Holiday e a brasileira Elis Regina. Já fez espetáculos baseados no repertório de ambas. Mas sabe qual outro artista também bate forte na cantora?
Sim, claro: António Variações.

A sua versão é mais pop que a versão original, e apesar do vídeo ser datado em 1994, Lena lançou a sua versão da música em 1987, no álbum Aguaceiro.
Outras que ela também canta, compostas por Variações, são Tu Aqui (que dá nome ao disco de 1989) e Adeus que me Vou Embora (do repertório do mesmo Tu Aqui). O vídeo abaixo foi gravado na Bósnia (?!) para soldados portugueses que estavam lá.

Em 2019, no mês de maio, Lena voltou à cena com álbum de inéditas. Antes, em 2014, fez o Carrossel no qual regravou músicas da sua carreira com um power trio de rock. Aliás, em Carrossel ela regravou Nuclear Não Obrigado! Em 2005, saiu um ao vivo também de regravações. Na prática, se a gente não contar 1992 e o álbum voltado para o público infantil Ou Isto Ou Aquilo, com poemas de Cecília Meireles musicados, não existia disco de inéditas de Lena desde… 1989, com o Tu Aqui! 30 anos!!!
Então o Desalmadamente é bem importante, mesmo.

O mais interessante: a voz de Lena segue poderosa, mesmo após um vício em heroína (que é confesso por ela própria como um dos seus maiores arrependimentos). As músicas são todas de Pedro da Silva Martins, o mesmo compositor por trás de Deolinda (já ouviu Parva que Sou, do Deolinda? Se sim, pois é, é dele! Se não, deveria ouvir! Segue um hino!). Resumo: CV o Desalmadamente tem!

Dê o play, é divertido, é uma letra boa, tem os modernos de Portugal no clipe, eu amei.

"Espero que te caia a boca ao chão
Q'eu estou pronta para a grande festa
e tu de charuto e roupão
com um arpão espetado na testa”

Tudo! Para finalizar, uma Lena das antigas, maravilhosa:

Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia

A frase do título é de William Shakespeare.
Tenho pensado muito nisso, tanto na atração mórbida pela ignorância que parece ter assolado o mundo (vide esse post sobre o novo Matrix e a minha atração pela série Years and Years) quanto no nosso apego pela providência de outrem. Estamos no século 21 e ainda explicamos coisas com a nossa fé - em Deus, em Nossa Senhora, no horóscopo.

signo.jpeg

Tudo isso para dizer que estou lendo um livro muito interessante chamado As Bruxas: Intriga, Traição e Histeria em Salem, da jornalista vencedora de prêmio Pulitzer Stacy Schiff.

as-bruxas.jpg

E por que ele é bom?
Bem, primeiro de tudo ele não é uma ficção: Schiff usou de documentos históricos para fazer uma reportagem sobre esse episódio horroroso da história dos EUA que aconteceu no século 17 na baía de Massachusetts e culminou na morte de 14 mulheres, 5 homens e dois cachorros. Todos acusados de bruxaria. Sim, bruxaria.
É surreal porque Schiff descreve as coisas como acreditava-se que elas eram, mesmo. Ela não escreve num tom superior de “eles acreditavam nisso, imagina que loucura?” É esperto da parte dela. Nos dias de hoje parece pouco improvável que alguém seja acusado de bruxaria e acabe com pena de morte, essa é a minha sensação…
Será?
Vou colocar um trecho do livro aqui:

Bruxas haviam perturbado a Nova Inglaterra desde a fundação. Elas afogavam bois, faziam o gado pular, derrubavam frigideiras, o feno das carroças, encantavam a cerveja. Lançavam coisas no ar, até criaturas desmembradas. Sem razão aparente, Hathorne perguntou a Tituba se ela sabia alguma coisa a respeito do menino de Corwin. Provavelmente imaginava que ela teria aleijado o filho manco do juiz, de nove anos, embora houvesse outros candidatos. As bruxas conseguiam estar em dois lugares ao mesmo tempo ou sair secas de um lugar molhado. Caminhavam sem ruído sobre tábuas soltas, teciam linho fino, conheciam segredos para clarear panos, sobreviviam a quedas. Podiam ser briguentas e resmungonas, ou inexplicavelmente fortes e inteligentes.”
— Stacy Schiff em As Bruxas

Ainda estou meio que no começo do livro, mas já para perceber que, bem…

e-o-pt.gif

Quando não encontramos explicações racionais para as coisas, partimos para outras explicações.

Terraplanismo, movimento antivacina, coach quântico… Poderíamos ficar aqui enumerando tantos fenômenos contemporâneos. É surreal, mas às vezes tem gente letrada que se nega a ver coisas. Gente que acredita que o reator de Chernobil na verdade não explodiu. Que não fomos para a lua até hoje.

Onde quero chegar? Em dois lugares:
1. Será que vermos o que acredita em algo diferente da gente como alguém burro ou do "time oposto” não é apenas um desserviço? Tentar compreendê-lo não seria um caminho mais viável? Não sei a resposta, pergunto por que isso é uma dúvida bem forte minha. Talvez não exista diálogo mesmo, mas acho que já partir do pressuposto que não existe diálogo soa, no mínimo, preguiçoso da nossa parte.
2. Pessoas esclarecidas acreditavam em bruxas. Isaac Newton, por exemplo. Ao mesmo tempo vemos a nós mesmos como seres tão esclarecidos. Tão diferentes do "time oposto". Será mesmo? Ontem (7/09) no Festival Coala fiquei observando os frequentadores. Muito tilelê, o que a direita adora chamar de esquerda caviar (odeio o termo porque foi cravado pela direita, mas no fundo a gente entende o que eles querem dizer). No palco, uma artista cantou uma música feminista acompanhada por uma banda só de homens. Isso foi a contradição mais clara entre tantas outras - como a comunicação do energético patrocinador dizendo "Estação resistência" numa referência dúbia à resistência elétrica mas também um óbvio toque político. Hay que ser esquedista pero sin perder lo capitalismo jamás? Tudo isso me fez pensar bastante. O inferno são eles ou nós mesmos, ou todo mundo junto? Existe o inferno? Quem somos nós na fila do capeta?

Vem, meteoro, e mata o resto das bruxas e dos puritanos que restaram porque, valha-me: não deu certo, não.

Você assistiu ao primeiro capítulo de Chernobyl?

A série da HBO estreou na semana passada e nessa, ao menos, a gente não precisa se preocupar com spoiler: sabemos bem como a história termina. Bom, pelo menos eu sei: pesquisei bastante porque, se você ainda não sabe: eu estive em Chernobil em janeiro desse ano.

A sala de controles da usina de Chernobil, mais especificamente do reator que explodiu, na série

A sala de controles da usina de Chernobil, mais especificamente do reator que explodiu, na série

O primeiro episódio é bem grande e bem tenso, já mostra logo a explosão do reator 4, os trabalhadores e os bombeiros sofrendo os efeitos da radiação, as primeiras mentiras que rolaram negando a extensão do acidente. Pesadíssimo, chocante - e sim, o reator que explodiu em 1986 é o número 4 pois existem o 1, 2 e 3. Eles continuam em atividade até hoje.

398 Likes, 26 Comments - Jorge Wakabara (@wakabara) on Instagram: "Esse atrás de mim é o reator número 4 que explodiu em Chernobil em 1986. Quer dizer: é uma..."

Sim, essa foto de cima foi tirada em janeiro e está no meu Insta. A estrutura montada ao redor do reator serve para conter a radiação que segue altíssima lá dentro, e deve continuar alta por séculos.

Quando eu contei que ia para Chernobil as pessoas ficaram doidas. É que na verdade eu começava aos poucos - primeiro dizia que ia para Ucrânia, aí perguntavam “mas por que a Ucrânia?” e eu contava o processo: a viagem estava marcada com a minha amiga Helô Dela Rosa para Londres e queríamos decidir algum lugar além da capital inglesa para ir. Aí ela disse: “Vamos para Kiev?!” Achei muito exótico porém gosto de coisas exóticas, ela disse “dá um Google Images, vê como é lindo!”

Se você der um Google Images vai ver que é lindo mesmo. Mas ela deixou para contar um pequeno detalhe só no final: o sonho e o plano verdadeiro dela era ir para Chernobil. Nesse vídeo abaixo a própria Helô fala mais sobre essa experiência:

Bom, aí era tarde, né, eu também fiquei com vontade de ir. Kiev é uma cidade bem bonita mesmo, com várias coisas interessantes para ver. Mas Chernobil e Pripyat são impressionantes, ruínas contemporâneas, símbolos da gravidade que o imprevisto pode tomar.

Não preciso dar muitas dicas porque se você for, você deve ir com uma agência especializada e eles mesmos vão ser os responsáveis por dar essas dicas. Mas enfim, não é um lugar que você pode sentar no chão, cheirar uma plantinha, tocar em algo que você encontrou - parece lógico mas alguns turistas que estavam no nosso grupo não entenderam tão bem… Também não é um lugar de turismo do jeito que a gente conhece. O local desperta reflexão, acho que pode até ser um gatilho dependendo da sensibilidade da pessoa.

Outro livro que recomendo (e que a Helô também leu) é Vozes de Tchernóbil: Crônica Do Futuro, da ganhadora do Nobel de 2015 Svetlana Alexijevich. Tristíssimo, com depoimentos de sobreviventes da tragédia, é um bom complemento para quem assistiu a esse capítulo de Chernobyl e se interessou. Abaixo, o trailer oficial: