A música pop está reencontrando a espiritualidade

Não exerço muito a espiritualidade mas acho lindo.

Bom, está claro que Kanye West lançou um disco gospel nessas alturas do campeonato, certo?

Não vou colocar o embed aqui pois sinceramente achei chato para dedéu, se quiser pode procurar, fica à vontade

Não vou colocar o embed aqui pois sinceramente achei chato para dedéu, se quiser pode procurar, fica à vontade

E 10 entre 10 artigos sobre Jesus is King já apontaram três coisas: 1) West já fez músicas que flertaram com o gospel antes, mas a diferença é que ele se converteu "de corpo e alma”, negando palavrões e profanidades do passado, algo surpreendente para um dos (se não o) maior rapper da atualidade 2) O gospel na música pop não é novidade, de Elvis Presley a Whitney Houston passando por mil outros 3) Gospel nos EUA não é igual-qui-nem o gospel daqui, é relacionado à música negra, à luta pela igualdade racial.

ISSO TUTTO POSTO:
No Brasil VÁRIOS artistas já se relacionaram com uma música mais espiritual em algum ponto da carreira de maneira muito feliz. Vide…

Jorge Ben Jor (e a alquimia, nesse disco seminal; mais sua relação com São Jorge e outras paradas)

Baden Powell (e o candomblé; ele morreu evangélico renegando grande parte do repertório)

Roberto Carlos (bem na pegada gospel americana nessa música, que é um soul com referências cristãs)

Tim Maia (e a imunização racional do Universo em Desencanto)

Raul Seixas (do hinduismo nessa ao ocultismo)

Elis Regina (e o catolicismo dos romeiros)

Gilberto Gil (e a espiritualidade no geral)

Clara Nunes (e a umbanda)

A lista é interminável.

Agora parece que a música pop brasileira está reencontrando a espiritualidade. Começa pelo álbum de estreia da MC Tha, sobre o qual já falei aqui, que começa com um canto umbandista pop maravilhoso.

Mas passa também pelo lindo álbum novo do Emicida, AmarElo, cuja primeira música mistura pastor (Henrique Vieira) com atabaque e coro da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos; cita na letra Buda, arruda, Barrabás, salmo e Ubuntu; traz violão remete ao da "igreja de pobre". É lindíssimo (e confesso que meu olho lacrimeja toda vez que ouço, de tão bonito). Ah, e conta com a voz de Fabiana Cozza, uma das mais lindas do Brasil hoje.

Suspiro.

Falando em chorar, já assistiu ao clipe da música nova da Linn da Quebrada?

É tão bonito e emocionado que nem sei. O coro poderoso, a letra, a apropriação da evocação espiritual em contexto que foge à lógica heteronormativa não para fins de provocação e confronto mas porque a espiritualidade é de todos. A música salva, sim.

(aliás, você já ajudou na vaquinha da Vicente Perrotta? saiba mais aqui)

Voltando para o pop internacional, uma das artistas que melhor usou as referências do catolicismo e atualizou-as é Madonna com o seu superhit Like a Prayer. No último álbum, Madame X, ela canta Batuka com as batucadeiras de Cabo Verde. Nessa salada toda, ela grava o clipe da música em Portugal - um tropeço, seria muito mais simbólico gravar na ex-colônia do que no ex-colonizador. Mas não deixa de ser poderoso: é música de trabalho com referências religiosas, é letra de protesto contra repressão. Gospel, portanto.

E você, já entrou em contato com seu lado espiritual hoje?

A canção de protesto portuguesa contra a energia nuclear

Quem acompanha o blog já deve ter reparado que estou com certa fixação pelo pop português (aqui, aqui, aqui, aqui). E também pode ser que saiba que eu já fui para Chernobil, antes da série da HBO, para ver de perto as consequências de uma tragédia envolvendo energia nuclear.
Então esse post vai unir ambas as coisas via Lena d'Água, cantora portuguesa que é filha de um jogador de futebol bem famoso chamado José Águas que foi do Sport Lisboa e do Benfica.
Em 1982, no seu álbum Perto de Ti, a primeira faixa é essa:

Pelo que entendi, a música foi uma reação a uma tentativa de instalação de uma usina nuclear em alguma região de Portugal. O acidente de Chernobil só aconteceria em 1986.

A música diz coisas como:
Nuclear não, obrigado
Antes ser activo hoje
do que radioactivo amanhã
Nuclear não, obrigado

Se queremos energia
sem envenenar o ar
Temos o calor do sol
o vento e a força do mar


Isso me faz lembrar que os ucranianos, ou pelo menos a guia que era responsável pelo tour que fiz em Chernobil, garantia que a energia nuclear era uma energia limpa e segura, mesmo com toda a história do acidente nuclear. Como se a tragédia tivesse sido um fato isolado, e que reatores nucleares continuam sendo a melhor solução.
Oh, well…
No Brasil, sou um defensor (não tão vocal e ativista, mas sou) da energia eólica e solar, coisas que o país tem de sobra; e acho que precisamos-devemos investir mais nessas tecnologias.

Bom, Lena é uma personagem superinteressante, então vou falar um pouco mais sobre ela nesse post, com licença!

lena-dagua.jpg

Do mesmo jeito que tivemos, no Brasil, a desbravadora Rita Lee, mulher à frente de banda de rock, Portugal teve Lena. Do fim dos anos 1970 para toda a década de 1980, Lena teve uma constante presença na cena da música popular portuguesa. Nos anos 1990, ela partiria para um caminho mais, digamos, mainstream? E talvez menos autoral, pelo menos na minha visão de quem acabou de conhecer o trabalho dela.
Lena tem uma ligação forte com duas cantoras: Billie Holiday e a brasileira Elis Regina. Já fez espetáculos baseados no repertório de ambas. Mas sabe qual outro artista também bate forte na cantora?
Sim, claro: António Variações.

A sua versão é mais pop que a versão original, e apesar do vídeo ser datado em 1994, Lena lançou a sua versão da música em 1987, no álbum Aguaceiro.
Outras que ela também canta, compostas por Variações, são Tu Aqui (que dá nome ao disco de 1989) e Adeus que me Vou Embora (do repertório do mesmo Tu Aqui). O vídeo abaixo foi gravado na Bósnia (?!) para soldados portugueses que estavam lá.

Em 2019, no mês de maio, Lena voltou à cena com álbum de inéditas. Antes, em 2014, fez o Carrossel no qual regravou músicas da sua carreira com um power trio de rock. Aliás, em Carrossel ela regravou Nuclear Não Obrigado! Em 2005, saiu um ao vivo também de regravações. Na prática, se a gente não contar 1992 e o álbum voltado para o público infantil Ou Isto Ou Aquilo, com poemas de Cecília Meireles musicados, não existia disco de inéditas de Lena desde… 1989, com o Tu Aqui! 30 anos!!!
Então o Desalmadamente é bem importante, mesmo.

O mais interessante: a voz de Lena segue poderosa, mesmo após um vício em heroína (que é confesso por ela própria como um dos seus maiores arrependimentos). As músicas são todas de Pedro da Silva Martins, o mesmo compositor por trás de Deolinda (já ouviu Parva que Sou, do Deolinda? Se sim, pois é, é dele! Se não, deveria ouvir! Segue um hino!). Resumo: CV o Desalmadamente tem!

Dê o play, é divertido, é uma letra boa, tem os modernos de Portugal no clipe, eu amei.

"Espero que te caia a boca ao chão
Q'eu estou pronta para a grande festa
e tu de charuto e roupão
com um arpão espetado na testa”

Tudo! Para finalizar, uma Lena das antigas, maravilhosa:

Conan Osíris é o novo António Variações?

Bom… olha aí embaixo e faz um certo sentido.

Conan Osíris na verdade é Tiago Miranda e se batizou assim em uma homenagem ao protagonista de Mirai Shônen Conan, série de TV do Hayao Miyazaki de antes da fundação do Studio Ghibli, que foi lançada em 1978 e chegou em 1980 em Portugal (9 anos antes de Tiago nascer); mais Osíris, o deus egípcio.
Conan é bem próximo da cena fashion portuguesa: fez a trilha de vários desfiles do ModaLisboa, a princípio em inglês. Elas foram compiladas no EP Silk, de 2014, que é um marco em sua carreira porque contém Amália, sua primeira música em português:

Provavelmente foi a partir daí que começou a relação concreta com o fado - o nome da música já remete à rainha do fado Amália Rodrigues, e a melodia e a letra trazem a melancolia do gênero com novas batidas. Adivinha quem fazia isso antes? António Variações.

Caso você não saiba, Variações é uma antiga obsessão minha sobre a qual já falei por aqui, artista português que morreu precocemente:
1. Recentemente foi lançada uma cinebiografia sobre ele em Portugal que quero muito ver
2. Depois da morte de Variações, já nos anos 2000, uma banda foi formada para gravar canções inéditas que ele tinha deixado

Esteticamente, como já demonstrei acima, Conan também se aproxima de uma visão mais arrojada de imagem de artista. E como ele é da "turma da moda", fica mais fácil.

conan-osiris.jpg

Depois do EP Silk, Conan lançou Música, Normal em 2016, mas foi em 2017, com Adoro Bolos, que ele começou a expandir seu público. A música-tema é bem, er, doida:

É aí que eu acho que Conan começa a se separar de maneira bem pontual da poética de Variações: a música é irônica e hedonista, apontando o fato do interlocutor adorar bolos (é isso mesmo) como um baita dum problema. Do meio para o fim ele ainda tem tempo de defender a turma LGBTQ+:
"Pai com pai
Pai com mãe
Mãe com mãe
Que é que interessa
O que interessa é dar amor
Banhinho e não comer à pressa

Nas feridas um beijinho, água fria, uma compressa
Ensinar que o mundo não cessa
Só porque a Tessa abraça a Vanessa"

Para o ouvido brasileiro, a sensação de estar ouvindo algo muito novo se amplifica primeiro porque o sotaque e as construções de frase são bem diferentes, e depois a gente sempre fica se perguntando se devemos levar o que ele diz pelo sentido literal ou ele está usando uma gíria, uma expressão tipicamente portuguesa, uma piada interna que só pode ser entendida com contexto?
Confesso que adoro essa sensação kkkkkkkkkk

Outra música do mesmo álbum é Celulitite, que vem a ser “a mania de achar que tem celulite". Risos! Ela ganhou um clipe não-oficial que já conta com mais de um milhão de visualizações no YouTube:

Acontece que Conan largou seu emprego em um sex shop (é sério, ele trabalhava em um sex shop) e decidiu se inscrever nesse ano no Festival da Canção que rola anualmente em Portugal, uma pré-disputa à vaga portuguesa do Eurovision. Usou a música Telemóveis (que é como os portugueses chamam o celular) e… ganhou.

Telemóveis também carrega toques surreais - cada um pode ter a sua leitura. Para mim ele está com saudades de alguém que já morreu e queria muito poder falar com essa pessoa novamente, mesmo que com um celular. E fica tão frustrado que… quebra o seu telefoninho, vixe.

Eu partia telemóveis
Mas eu nunca mais parto o meu
Eu sei que a saudade tá morta
Quem mandou a flecha fui eu

Conan ficou em 15º no Eurovision de 2019, o que acho um pouco injusto mas também nunca entendi direito o Eurovision e no fundo sempre achei meio cafona. Não que eu não goste de coisa cafona - mas acho que seria esquisito Telemóveis ganhar, mesmo… Rsrsrsrs! Quem ganhou o primeiro lugar foi Replay, uma música de Chipre (!!) da artista Tamta. Ouça:

Ou não ouça - porque é uma BOBAGEM.

Por fim, se você googlar Conan Osíris António Variações, vai ver diversos resultados tentando responder a pergunta do título desse post. O melhor é um em vídeo, onde quem responde é… o próprio Conan:

FAIXA BÔNUS: Conan já citou essa música como “uma das obras mais necessárias". Com vocês, Sr. Extraterrestre de Carlos Paião por Amália Rodrigues: