Robert Zemeckis, o diretor de Convenção das Bruxas: fixação por poção

Robert Zemeckis é mais conhecido pelo De Volta Para o Futuro, e com razão. É um superclássico. Porém, entre as suas várias outras direções, que tem muito biscoito fino (tipo Forrest Gump e Contato, simplesmente, tá bom pra você?), duas ficaram bem marcadas no meu imaginário desde criança.

A primeira é Uma Cilada Para Roger Rabbit, com a inesquecível Jessica Rabbit, em 1986.

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Jessica era uma caricatura da femme fatale do filme noir. Perigosa. “Eu não sou má, apenas fui desenhada assim.”

E teve A Morte lhe Cai Bem, de 1992.

As maravilhosas Helen (Goldie Hawn) e Madeline (Meryl Streep) em A Morte lhe Cai Bem

As maravilhosas Helen (Goldie Hawn) e Madeline (Meryl Streep) em A Morte lhe Cai Bem

A Morte lhe Cai Bem é um dos filmes mais importantes para o meu imaginário – formado desde criança. Eu lembro que, a partir daí, inventei uma história mórbida, mas que era pra ser cômica, de uma família rica que tem uns testamentos e alguém vai matando todo mundo com uma poção ou algum poder mágico pra ficar com todo o dinheiro. As tramas não tem muito a ver entre si; era mais a interpretação doida das atrizes, a poção e esse título A Morte lhe Cai Bem que me inspiravam.
(Eu tinha uns 13 anos? RISOS! E convenci um povo da sala a fazer uma peça de teatro com essa história, se não me engano ela foi montada!)

Jessica Rabbit era a mulher impossível (tanto que é desenhada). Uma personagem que tinha essa coisa de cantar em boate. Desde então, eu adoro personagens mulheres que cantam e são sensuais. Incluindo Breathless Mahoney (Madonna) em Dick Tracy (1990). Uma outra peça que eu fiz na escola tinha uma personagem que era assim, dublava Chocolate na versão da Marisa Monte (!!!). Nesse ano voltei a falar com a menina (hoje mulher) que interpretou essa personagem. A gente também tinha essa idade, mais ou menos, uns 12. Ela me disse: “Eu interpretava uma putinha, né?"
Era isso mesmo, era uma putinha – tinha até uma piada de rodar a bolsa! AOS DOZE ANOS! HAHAHAHAHAHA!

As mulheres de A Morte lhe Cai Bem são camp, obcecadas pela juventude eterna e… metidas com magia, digamos assim. E eu já falei da poção, né? Era a coisa mais fascinante pra mim, aquele líquido roxo com brilho naquele vidro lindo.

Sempre Viva!

Depois de todos esses anos (quase 30!), Zemeckis volta a um filme com uma poção. E também é uma poção roxa! Trata-se de Convenção das Bruxas, remake do longa com Anjelica Houston de 1990 de Nicolas Roeg.

A vovó (Octavia Spencer) tenta reverter o efeito da poção em Convenção das Bruxas (2020)

A vovó (Octavia Spencer) tenta reverter o efeito da poção em Convenção das Bruxas (2020)

O roxo é uma cor normalmente ligada a espiritualidade e, portanto, à magia. Mas está mais voltada pro sentido de purificação e libertação.
Não é por nada, mas enquanto todo mundo fica lembrando do Convenção das Bruxas anterior ao ver esse filme novo de Zemeckis, eu fico lembrando é de A Morte lhe Cai Bem, com a poção roxa, a interpretação exagerada das atrizes, a absurda bruxa Lisle von Rhuman (Isabella Rossellini) de looks maravilhosos e seminudez.
Claro, Convenção das Bruxas é bem mais família. E nem por isso deixa de ser divertido.

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Mas OK, OK, o que todo mundo quer saber: o remake é tão ruim quanto estão dizendo em comparação ao original?

Você sabe como as pessoas que falam de cinema são, né?
Chatas.
Sinceramente, eu me diverti bastante com essa nova versão. É difícil competir com a anterior por motivos de:
1. Era inglesa.
2. Anjelica Houston.

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A versão 2020 tem duas outras vantagens:
1. Claro que os efeitos especiais são bem melhores.
Obs.: Só que as corridas dos ratinhos podiam até acontecer mais devagar, sinceramente acho os detalhes da anterior nesse sentido, dos lugares por onde os ratos passam, mais interessantes (dá pra ver como é debaixo da escada, naquele outro buraquinho, no canto do corredor e por aí vai).
2. Octavia Spencer.

Sr. Stringer (Stanley Tucci) e vovó em cena

Sr. Stringer (Stanley Tucci) e vovó em cena

OK. E a Anne Hathaway?

Pois é… A Anne.
Não é que ela mande mal, necessariamente. Também não manda maravilhosamente bem. A obviedade é que é difícil competir com Anjelica Houston, mas existem alguns detalhes dignos de nota.
1. Ela não fica exatamente horrorosa como a Grande Bruxa de Houston. Tem um tchananã: o pé com garra, essa bocarra de Ichi the Killer, a careca cheia de pereba… Mas olha a da Houston, é tipo a mãe do Freddie Krueger! Horrorosíssima!

2. Ela tem um sotaque bizarro que sabe-se lá de onde ela tirou.
3. Quem mandou ter tanto colágeno? Pra mim a Bruxa Mor tem que ser uma senhora, com cara de senhora, metendo banca de senhora. Às vezes Hathaway me parece menina demais, por mais que já não seja.

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4. Consequentemente e por mais estranho que pareça, acaba que eu acho a interpretação de Houston mais cheia de nuances e… sutilezas? A da Hathaway me parece meio uma nota só, muito caricata demais.
5. Em suma, a bruxa de Houston está mais próxima das interpretações divertidas e precisas de Goldie Hawn e Meryl Streep em A Morte lhe Cai Bem do que da de Hathaway. E a bruxa de Hathaway está mais próxima de… Jessica Rabbit. Um desenho.

Agora: a criança que assistir vai se importar com isso?
Não.
É divertido. Tá tudo bem!

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Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia

A frase do título é de William Shakespeare.
Tenho pensado muito nisso, tanto na atração mórbida pela ignorância que parece ter assolado o mundo (vide esse post sobre o novo Matrix e a minha atração pela série Years and Years) quanto no nosso apego pela providência de outrem. Estamos no século 21 e ainda explicamos coisas com a nossa fé - em Deus, em Nossa Senhora, no horóscopo.

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Tudo isso para dizer que estou lendo um livro muito interessante chamado As Bruxas: Intriga, Traição e Histeria em Salem, da jornalista vencedora de prêmio Pulitzer Stacy Schiff.

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E por que ele é bom?
Bem, primeiro de tudo ele não é uma ficção: Schiff usou de documentos históricos para fazer uma reportagem sobre esse episódio horroroso da história dos EUA que aconteceu no século 17 na baía de Massachusetts e culminou na morte de 14 mulheres, 5 homens e dois cachorros. Todos acusados de bruxaria. Sim, bruxaria.
É surreal porque Schiff descreve as coisas como acreditava-se que elas eram, mesmo. Ela não escreve num tom superior de “eles acreditavam nisso, imagina que loucura?” É esperto da parte dela. Nos dias de hoje parece pouco improvável que alguém seja acusado de bruxaria e acabe com pena de morte, essa é a minha sensação…
Será?
Vou colocar um trecho do livro aqui:

Bruxas haviam perturbado a Nova Inglaterra desde a fundação. Elas afogavam bois, faziam o gado pular, derrubavam frigideiras, o feno das carroças, encantavam a cerveja. Lançavam coisas no ar, até criaturas desmembradas. Sem razão aparente, Hathorne perguntou a Tituba se ela sabia alguma coisa a respeito do menino de Corwin. Provavelmente imaginava que ela teria aleijado o filho manco do juiz, de nove anos, embora houvesse outros candidatos. As bruxas conseguiam estar em dois lugares ao mesmo tempo ou sair secas de um lugar molhado. Caminhavam sem ruído sobre tábuas soltas, teciam linho fino, conheciam segredos para clarear panos, sobreviviam a quedas. Podiam ser briguentas e resmungonas, ou inexplicavelmente fortes e inteligentes.”
— Stacy Schiff em As Bruxas

Ainda estou meio que no começo do livro, mas já para perceber que, bem…

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Quando não encontramos explicações racionais para as coisas, partimos para outras explicações.

Terraplanismo, movimento antivacina, coach quântico… Poderíamos ficar aqui enumerando tantos fenômenos contemporâneos. É surreal, mas às vezes tem gente letrada que se nega a ver coisas. Gente que acredita que o reator de Chernobil na verdade não explodiu. Que não fomos para a lua até hoje.

Onde quero chegar? Em dois lugares:
1. Será que vermos o que acredita em algo diferente da gente como alguém burro ou do "time oposto” não é apenas um desserviço? Tentar compreendê-lo não seria um caminho mais viável? Não sei a resposta, pergunto por que isso é uma dúvida bem forte minha. Talvez não exista diálogo mesmo, mas acho que já partir do pressuposto que não existe diálogo soa, no mínimo, preguiçoso da nossa parte.
2. Pessoas esclarecidas acreditavam em bruxas. Isaac Newton, por exemplo. Ao mesmo tempo vemos a nós mesmos como seres tão esclarecidos. Tão diferentes do "time oposto". Será mesmo? Ontem (7/09) no Festival Coala fiquei observando os frequentadores. Muito tilelê, o que a direita adora chamar de esquerda caviar (odeio o termo porque foi cravado pela direita, mas no fundo a gente entende o que eles querem dizer). No palco, uma artista cantou uma música feminista acompanhada por uma banda só de homens. Isso foi a contradição mais clara entre tantas outras - como a comunicação do energético patrocinador dizendo "Estação resistência" numa referência dúbia à resistência elétrica mas também um óbvio toque político. Hay que ser esquedista pero sin perder lo capitalismo jamás? Tudo isso me fez pensar bastante. O inferno são eles ou nós mesmos, ou todo mundo junto? Existe o inferno? Quem somos nós na fila do capeta?

Vem, meteoro, e mata o resto das bruxas e dos puritanos que restaram porque, valha-me: não deu certo, não.