Comida para distrair (e pensar)

Na quarentena a gente volta pro básico, né: comer e dormir. A gente já estava falando muito de comida antes, vide Masterchef e o sucesso de programas culinários no canal a cabo. Aí a discussão já estava ficando mais profunda, com Paola Carosella e principalmente a Rita Lobo (um beijo, Wolf!) soltando o verbo no Twitter, em outras redes sociais e em entrevistas a respeito do significado da comida e do quanto a gente é prejudicada pelos ultraprocessados e por essa ideia de que fazer comida é um fardo desnecessário.

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Mas confesso: eu mesmo não gosto de cozinhar. Por nunca ter aprendido de verdade, pra mim é tudo muito complicado, uma alquimia misteriosa com a qual não me relaciono direito. Minha sorte é que casei com alguém que gosta de cozinhar e que prepara coisas incríveis! A ideia de demonstrar amor a partir da cozinha me atrai demais - é algo que foi bastante falado pelo Babu Santana no BBB20, né?

Babu na cozinha VIP do BBB20 - na qual, diga-se de passagem, ele cozinhou pouco…

Babu na cozinha VIP do BBB20 - na qual, diga-se de passagem, ele cozinhou pouco…

Ao mesmo tempo tenho um fascínio por comida. Amo comer. E uma das coisas mais importantes para mim quando viajo é comer coisas locais. Fui muito feliz em Tóquio, em Kyiv (que você conhecia por Kiev), em Florença. Nem tanto em Roma (me decepcionei um pouco, mas ao mesmo tempo descobri a alcachofra à moda judia, fritinha, uma maravilha). Amo a comida asiática de Londres (a comida inglesa, confesso, é meio uó) e de Berlim. Fiquei doido pela comida paraense quando fui pra Belém.

Os significados da comida ficaram ainda mais realçados num momento de pandemia, quando comer é uma das poucas coisas às quais a gente consegue se agarrar para se entreter, muito mais do que apenas se nutrir. Comer é prazeroso, divertido, didático; e é um ótimo assunto para puxar papo na reuniãozinha do Zoom com os amigos ("Você tá fazendo pão? O que era aquilo que você publicou nos stories ontem? Parecia fantástico!").

Uma coisa que já tinha percebido antes e está me pegando cada vez mais agora é que a variedade de programas de gastronomia é tanta que acho que, mesmo que o assunto não te atraia de primeira, algum deles acaba te agradando. Nessa quarentena vários têm sido meus companheiros. Vou te mostrar!

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Café, Almoço e Jantar

Na Netflix

Ignore o primeiro episódio, que é maconheiro demais para quem está sóbrio. O chef David Chang viaja para algumas cidades do mundo com pessoas famosas e se relaciona com a cultura (e comida, claro) dos locais. O destaque fica para o último episódio dessa primeira temporada, com a Kate McKinnon do Saturday Night Live: eles vão para o Camboja e percebem que a gastronomia local diz muito sobre a história recente do país.
Ah, e assista ao Ugly Delicious, com o mesmo David Chang: é tudo!

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A História da Alimentação no Brasil

Na Amazon Prime

A série da Heco Produções é baseada no livro de Câmara Cascudo e o título é autoexplicativo. Acho muito bom quando relacionam a história da comida com a história do local onde essa comida é servida. Só assisti ao primeiro episódio até agora, que é sobre a mandioca, mas já estou empolgado para ver mais. Lembra a série É Por Quilo do Nexo, que também é ótima e está disponível no YouTube (abaixo!). Mas A História da Alimentação no Brasil pretende ser mais enciclopédica, tem um tom mais documental.

Programas de culinária sempre são hipnotizantes para mim (só que eu não aprendo, fico assistindo e pensando "MEU DEUS, ele me falou como fez e mesmo assim não tenho ideia de como ele chegou nisso"). Sou fissurado em Food Network, na própria Rita Lobo também (a minha mãe é fã mas nunca segue o que ela fala: “A Rita disse para eu colocar coentro mas eu não quis, coloquei salsinha. E ela falou que era para colocar quatro ovos, mas eu só tinha três"). Acho que ficaria sem sentido incluir todos os que gosto nessa lista, mas vou colocar um que comecei a assistir agora (chegou na Netflix faz pouco tempo) e amei demais.

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Cozinhando com Nadiya

Na Netflix

O que eu gosto na Nadiya Hussain é que tudo pode. Até batata enlatada! Ela é adepta do "quanto menos tempo você gastar na cozinha, melhor", sem abrir mão do sabor, claro. Suas receitas têm um senso de praticidade que é charmoso - você sente que ela realmente quer te ajudar. Uma aliada! Isso deixa o programa mais humano. Para mim é muito irritante quando alguém está ensinando uma receita na TV e sai cortando o legume bem bonitinho como se tivesse nascido com esse talento. Ou pior: quando a cebola aparece magicamente cortada numa tigelinha! Affff! A Nadiya procura facilitar as coisas ao máximo: se der para fazer a receita sem cortar o legume, ela fará.
Tem outra chef que é quase assim mas dá pra sentir a experiência dela na cozinha: a Rachel Ray. Ela tem um programa no Food Network, esse aqui:

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Refeição em 30 Minutos

No Food Network

A premissa é muito boa: Rachel Ray prepara uma refeição em 30 minutos corridos, que às vezes inclui até sobremesa. Só que, claro, ela é uma expert. Assisto e fico calculando mais 15 minutos para cada coisa no meu caso. Até eu achar o liquidificador já são mais 5…

E tem as séries, né? Já falei de Midnight Diner aqui, que é maravilhosa. Tem outra que acho ruim mas assisto mesmo assim (???) e vou recomendar para vocês também (?????).

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Samurai Gourmet

Na Netflix

Por que estou recomendando? Porque tem uma parte que é ótima: o recém-aposentado Takeshi (Naoto Takenaka) decide que é hora de comer o que quiser por aí, e cumpre à risca. Só que tem um problema: a metáfora do tal samurai (Tetsuji Tamayama), que aparece em pessoa na série, e simboliza o ímpeto dele de "fazer o que quiser como um samurai faria”. A trama é baseada num mangá, e no mangá essa fantasia do samurai pode até funcionar, mas num live action fica uma coisa meio… Trapalhões?
Então faça como eu: quando o samurai aparece, dá uma checada no Twitter.

Agora, um dado interessante: esse não é o único mangá de Masayuki Kusumi que inspirou uma série. Tem esse também…

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Essa é a capa da edição nacional, inclusive!

Gourmet é da editora Conrad

Gourmet acabou gerando uma outra série, a The Solitary Gourmet. Dessa vez quem sai por aí experimentando as comidas é um executivo de vendas. Na internet eu só consegui encontrar com legenda em chinês, então, er… Não sei se é bom. O mangá é muito legal, amo!

E tem reality show de comida? Tem sim. Mas desculpa, não estou acompanhando o da Globo, depois de BBB tá rolando um detox. Hahahahahahaha!

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The Final Table

Na Netflix

Não tão novo mas divertido. The Final Table tem aquela coisa que existe em todo reality show: um storytelling (ou uma tentativa disso) que vai mostrando características dos participantes e transforma-os em personagens. Então tem o que você adora, o que você simpatiza, o que você não curte e o que você quer que saia imediatamente da sua frente (no meu caso, era essa loira da foto). A competição em duplas, com chefs profissionais, tem mais um elemento bacana: cada episódio é relacionado com a culinária típica de um país. E no do Brasil, eles chamaram a Alessandra Ambrósio para experimentar os pratos e opinar. Achei engraçado: pedir para uma modelo falar sobre comida é tipo pedir para um médico elaborar opinião sobre cigarros, né? “E aí, Drauzio? Qual é mais gostosinho, o light ou o Marlborão?”

Já o Mandou Bem para mim é um pouco cansativo: você investe tanto naquelas pessoas para no episódio seguinte aparecerem outras 3? Devia ser uma coisa em série com eliminações semanais para me pegar. É engraçado, mas não prende minha atenção.

E você, está assistindo algo? Aproveita e ouve meu podcast, o último episódio que saiu do Quatrilho traz quatro músicas que falam de comida!

Quem curtiu esse post talvez curta:
. Dicas para quem vai pela primeira vez para Londres - quando tudo isso acabar… não custa se planejar desde já!
. O meu roteiro de lámen em SP e uma dica: vários estão fazendo delivery, viu?
. O filme Ramen Shop e o preconceito racial na Ásia

A sandália da Manu e uma questão de proporção

oh hi

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Desculpem-me pela ausência em plena quarentena, esse período no qual geralmente se produz mais. Não sei quem inventou isso, mas dizem as línguas (as boas e as más) que é assim que ocorre.
A verdade é que produzi sim, mas não para cá - o famoso "vem coisa boa por aí, hein". Ou melhor: espero que venha, vamos torcer! :) Uma parte da minha parte eu já fiz.

Mas antes que eu e você nos percamos num labirinto de frases misteriosas cuidadosamente escolhidas para te despertar curiosidade e deixar você

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gostaria de dizer mais duas coisas. A elas:

1. Pensei bastante sobre o blog e sobre a newsletter (que também miou nesse tempinho, eu sei). Decidi que não haverá periodicidade certa nem de uma coisa, nem de outra. Motivos: quero escrever aqui só quando achar que o assunto rende bastante, caso contrário vai nas minhas redes, uai. E quero que a newsletter tenha algo mais do que apenas links. Então estou pensando no que a newsletter pode ter que não vai ter aqui, e aí ela vai ter uma vida mais própria e uma razão maior em existir. Combinado? Aceito sugestões.
(Estou falando tudo isso mas se eu bem me conheço amanhã podem ter cinco posts novos nesse sítio. Sou assim, é o meu jeitinho. Desculpa qualquer coisa.)

2. É muito emblemático que esse blog volte depois de uma pausa e depois de quase um ano de existência com um post que, no seu título, conversa bastante com um de seus primeiros posts…
A sandália da Beyoncé NÃO é o retrato do mundo atual. Aliás, segue atual. Recomendo.
A sandália da Manu também NÃO é o retrato do mundo atual, mas é uma boa desculpa para falar de umas coisas que venho pensando… Chega mais.

Bom, você sabe do que estou falando nesse título. Não precisa fingir.

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Esse post é dedicado a Flavia Akemi e Daniel Beoni

Que pediram para eu falar desse assunto aqui! Acredita?

Primeiro os fatos: essa sandália que Maria Manoela Gavassi tem usado nessa edição do BBB20 que chega ao fim é da marca Buffalo, de Londres. A Buffalo existe desde 1979 e no começo vendia bota de caubói (sério), nos anos 1980 já começou a investir em tênis e em 1995 lançou um tênis com uma plataforma.
Faça as contas. É isso mesmo.

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No fucking way

Really?!

E mais: a Buffalo relançou seus tênis-plataforma recentemente, talvez porque percebeu que os anos 1990 estão em alta e que até as próprias Spice Girls voltaram em 2019.

Claro que não foram as Spice Girls que inventaram a plataforma. Outra baixinha, diga-se de passagem, é conhecida por ser a grande divulgadora desse modelito da sola grossa láááá na década de 1940.

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Carmen Miranda

Ela usava as plataformas de Salvatore Ferragamo, que é apontado como o criador da plataforma

O objetivo da Carmen, assim como o objetivo de toda baixinha que usa plataforma, era parecer mais alta. Mas funciona? Bom, você concretamente fica mais alta com a ajuda delas, e no caso das de Carmen Miranda, a ideia é usar um salto bem alto de maneira mais confortável porque a diferença entre a altura dos dedos e do calcanhar não é tão grande.
Mas parecer mais alta de maneira natural não me parece ser a ideia da ~~ papete chunky ~~ de Manu Gavassi (caraca, não acredito que escrevi papete chunky nesse blog).

Você deve se lembrar que a moda dos anos 1990 com as Spice Girls e os clubbers foi evoluindo. Ela na verdade começou antes, na mesma Londres, com os creepers, esses sapatos com a sola mais grossa. Senta que a história vai longe: essas solas originalmente serviam para soldados em missão no deserto por motivos de terreno arenoso e solo muito quente. Na civilização, ex-soldados e depois civis começaram a tirar onda com essa sola, aí sem motivo prático, pela estética. Teddybears, rockabillies, piriripororó. A gente sabe de alguém em Londres que, na década de 1970, quis resgatar essa estética teddybear dos anos 1950, não sabe? Vivienne Westwood, na época mulher do…

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Olha o creeper no pé dele

Ou seja, o creeper passou a ser uma coisa punk. Vivienne seguiu sendo fã de plataforma, tanto que fez Naomi Campbell tombar de uma no desfile de fall 1993.

Então, quando a montação clubber e as Spice Girls vieram com a plataforma, isso conversava com os punks, olha que doido.

E isso tudo deu em… argh…

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Um filhote de cramunhão em forma de bota

Não é possível que vocês que usavam isso gostavam disso

Bom, então é isso: é muito desproporcional (além de feio porque meio animalesco sem ser, não é à toa que o apelido é bota pata de bode, certo?).
Geralmente são meninas bem pequenas que usam. Então a comparação fica inevitável.

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A proporção da cabeça grande de Monster High e Bratz (olha quão longe irei) se conecta com a questão da menina meiga e inocente, porque lembra os traços infantis. A criança tem uma cabeça maior, proporcionalmente, que um adulto. Isso é um dos princípios da estética kawaii: a "desproporção” mexe com o nosso instinto de preservação, inspira cuidados. Pois um filhote também inspira cuidados! O começo da vida requer nossa defesa, a gente tem que resguardá-lo.
Por isso, sim: acho que existe algo não-intencional mas um tanto bizarro nessa estética desproporcional. Uma negação do amadurecimento.
E o pé gigante? Mais esquisito ainda, porque aí é uma brincadeira de desproporção que não mexe com esse instinto primordial mas remete a… bonecas! Esquisitíssimo.

A bota pata de bode talvez não volte (oremos). Mas a Melissa tem uma "versão” da sandália da Manu.

Na verdade a inspiração não deve ser a Manu - a Melissa já estava lançando papetes plataforma antes da estreia do BBB20, porque, afinal, o modelo está na moda. A própria Manu comprou essa papete antes de ir, certo?

Na verdade a inspiração não deve ser a Manu - a Melissa já estava lançando papetes plataforma antes da estreia do BBB20, porque, afinal, o modelo está na moda. A própria Manu comprou essa papete antes de ir, certo?

Mas resumindo: essa atração pela desproporção é síndrome de Peter Pan, de plástico, do quê?
Sinceramente, meu palpite é: síndrome do brinquedo de plástico sim. Assim como rola o #bratzchallenge, sobre o qual já comentei.

No caso da Manu Gavassi, acho que também entra um desenvolvimento (que assim como essa desproporção, vem de longa data) da ironia no discurso estético, que questiona a referência vigente do que é belo e de bom gosto como forma de rebeldia ou um "tô nem aí” bem blasé. Particularmente adoro essa ironia estética, um simulacro de cafona pela simples consciência e premeditação: “Eu sei que é cafona e mesmo assim optei por isso". Aí vai enumerando os valores expressos: coragem, determinação, individualidade, independência em relação à opinião do outro.

Mas acho que posso desenvolver mais o assunto em um outro post. OK?

E, Manu, nada pessoal. Isso tudo que falei vem de um lugar de verdade e carinho, viu?
Qualquer coisa te mando um áudio de desculpas.

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