A (quase) trilogia teen de Jorge Furtado

Você conhece o Jorge Furtado, né? Se você em mais ou menos a minha idade – um pouco mais, um pouco menos – entrou em contato com o trabalho dele bem cedo. É que era mania as escolas passarem esse vídeo aqui.

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Ilha das Flores

Curta de 1989

Esse post da Galileu explica Ilha das Flores direitinho.

Bom, recentemente lembrei de Houve uma Vez Dois Verões, o primeiro longa dirigido por Furtado, lançado em 2002. Fiquei com saudades – vi quando estreou e nunca mais, mas lembrava de como gostei. Na época ninguém era hipster, o termo da vez era indie. É muito esquisito ter que explicar isso agora, porque indie saiu do vocabulário! Hahahahahaha! Ser indie era gostar de bandas e publicações independentes, tinha a ver com cultura underground. Só que ao mesmo tempo isso veio muito importado dos EUA, e Alanis Morissette já tinha implodido o rótulo “alternative” com seu Jagged Little Pill, usando códigos do indie para fazer dele um dos discos mais vendidos da história.

Praticamente todo ano alguém ressuscita uma matéria da Veja São Paulo que falava dos indies – era uma tribo urbana com código estético e tudo (óculos de grau de aro grosso e escuro, cabelo meio Beatles com pomada ou sem lavar, camiseta de manga comprida por baixo da camisa ou de outra camiseta colorida, jeans skinny ou calça de alfaiataria preta, All Star, jaqueta da Adidas, paletó justinho tipo Strokes).

Depois o emocore se popularizou, as coisas se misturaram e ninguém mais sabia diferenciar o emo do indie, então acho que os indies começaram a mudar o jeito de se vestir para evitar a confusão – desculpa, mas essa é a minha teoria… kkkkkkkkkkk!

Por que falei tudo isso? Porque Porto Alegre era uma espécie de capital indie, e sendo assim Houve uma Vez captou um tanto disso. Ou seja: não apenas é um filme que trata o jovem como ser pensante (e não como um retardado) mas traz referências soltas sobre esse mundo do qual a gente fazia parte. Na trilha sonora tem, por exemplo, Frank Jorge (com Cabelos Cor-de-Jambo), Wander Wildner (versão de Without You do Badfinger) e até os mineiros do Pato Fu (a versão deles para Coração Tranquilo, do Walter Franco). Mas, principalmente, tem Video Hits com Perdido e Meio, do próprio líder da banda, Diego Medina.

Nossa, o CD Registro Sonoro Oficial que saiu em 2001 pela Abril Music rodou muito no meu discman. A fita demo de 2002, Feito em Casa e Com Muito Orgulho, inclui a Perdido e Meio que acabou na trilha de Houve uma Vez, mas o Video Hits acabou naquele mesmo ano.
Tem tanta banda que eu ouvia naquela época e ficou ali, paralisada naquele meu momento de vida… Wonkavision, Maybees (que depois virou Ludov), Monokini, Pullovers. O próprio CSS, que hoje é hipster mas antes era indie.

Com a nostalgia batendo forte, comecei a notar como o trabalho de Furtado foi importante na minha formação cultural pop. E decidi rever Houve uma Vez Dois Verões. E mais: percebi uma "quase trilogia” teen na carreira de Furtado. Calma que vou explicar o "quase”! Mas primeiro vamos ao que seriam os dois primeiros longas desse trio.

Envelheceram bem?
Para mim é difícil dizer com distanciamento, já que ambos estão na minha memória afetiva. Sigo gostando deles por alguns motivos – ei-los:

. Filme nacional classe média: sou super a favor da diversidade de assuntos na cinematografia do país. Houve uma Vez é a descoberta do amor, sexo e amadurecimento. Meu Tio Matou um Cara traz o racismo a partir dos olhos de um rapaz que ainda está no colégio, de uma família negra e de classe média, e também tem como tema principal a descoberta do amor e sexo, das relações e suas "lógicas", o funcionamento do mundo adulto.

. Ambos falam de conflitos entre gêneros: colocam a mulher como um ser mais esperto e pilantra que engana o “ingênuo homem". É problemático, mas eles o fazem de maneira carismática, deixando essas mulheres também simpáticas (Roza, interpretada por Ana Maria Mainieri, no primeiro; Soraia, interpretada por Deborah Secco, no segundo), de modo que você não tem raiva delas. Incomoda essa coisa da "mulher vamp", acho meio ultrapassado, mas não chega a me fazer desgostar dos longas.

. Trio: é instigante que a dinâmica de ambos seja mais ou menos de trio, com dois homens e uma mulher. Em Houve uma Vez é até menos, porque Roza não interage tanto com o amigo de Chico (André Arteche), Juca (Pedro Furtado). Só que no Meu Tio Matou um Cara, Isa (Sophia Reis) está bem no meio da disputa entre Kid (Renan Gioelli) e Duca (Darlan Cunha). Síndrome de Jules e Jim total.

. Em ambos a presença do narrador em primeira pessoa é fortíssima. Isso aproxima a gente dos personagens principais, e nos faz saber o que se passa na cabeça deles de maneira rápida e simples. Desse jeito, a narrativa se aproxima de um sabor Confissões de Adolescente, só que com protagonistas masculinos.

. As histórias não são exatamente cotidianas: na primeira uma moça dá golpes dizendo que está grávida e que precisa de dinheiro para o aborto para um monte de caras; na segunda, o tio de um rapaz matou um cara (dãããrrrr) e precisa responder ao processo judicial enquanto na paralela corre o drama do rapaz que não consegue declarar seu amor para a amiga de infância. Mas ambas incluem elementos da vida urbana que as deixam mais realistas: a mesa do boteco, a loja de CD, o ônibus, a pia de louça, a caneta do Pikachu.

Houve uma Vez: Chico atrás de Roza no fliperama

Houve uma Vez: Chico atrás de Roza no fliperama

. Furtado inclui dois elementos muito caros ao adolescente nas tramas: o videogame (em forma de fliperama no primeiro) e a música.

. O roteiro em si é cheio de sacadinhas. Diálogos bons, plot twists, respostas rápidas. Acima de tudo: diverte.

. Meu Tio ganha vários pontos ao colocar um negro e uma família negra como protagonistas de um filme para jovens: coisa que John Hughes nunca fez (a falta de diversidade racial nos filmes do norte-americano é chocante) e que, em 2004, ano do lançamento, não era tão discutida quanto hoje.

. Carisma. Darlan Cunha, que é o Laranjinha de Cidade dos Homens, vulnerável & adorável; Sophia Reis, a nossa Emma Watson; André Arteche, um ótimo sonso; Pedro Furtado prova ser mais que o "filho do chefe” roubando a cena (ele é o filho do diretor). Tenho uns probleminhas com Ana Maria Mainieri, acho que ela está um pouco abaixo do nível dos meninos, quase chata no seu ar blasé. Renan Gioelli também, é meio qualquer coisa, tipo um genérico do Arteche. Menções honrosas para Júlia Barth como a ruiva e desenvolta Carmem em Houve uma Vez e a ótima dupla Dira Paes e Ailton Graça em Meu Tio.

Isa e Duca em Meu Tio Matou um Cara

Isa e Duca em Meu Tio Matou um Cara

Bom, e aí chegamos em "mais ou menos” o terceiro filme teen de Furtado, que não é de Furtado.
Mas é da mesma produtora (Casa de Cinema de Porto Alegre), conta com ele como um dos roteiristas e é dirigido pela grande parceira profissional dele, Ana Luiza Azevedo – os dois assinam Doce de Mãe, a série brasileira com Fernanda Montenegro que levou o Emmy internacional.

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Antes que o Mundo Acabe, de 2009, não é tão bom quanto os dois primeiros. Também não é uma porcaria – assisti e me diverti, e acho que isso é o mais importante. Mas não dá para ignorar seus defeitos.

A premissa é boa: um rapaz, Daniel (Pedro Tergolina), sempre soube que seu atual pai (Murilo Grossi) não é seu pai biológico (Eduardo Moreira). E um dia recebe uma carta desse pai biológico, que também chama Daniel e é fotógrafo, depois de toda uma vida sem notícias. E apesar das semelhanças entre esse e os filmes sobre os quais estava falando antes, existem diferenças cruciais. Vamos a elas.

. Tem narração. Mas quem narra é principalmente a irmã mais nova de Daniel, Maria Clara (Caroline Guedes). A gente perde a voz interior do protagonista, mas ganha em simpatia: Maria Clara, apesar de bem criança, tem o ritmo e o conteúdo enciclopédico mais próximo da voz de Ilha das Flores do que os protagonistas dos longas anteriores. Quem diria?

. Trio de novo. Mas que encosto de Jules e Jim é esse, né? Só que o problema é que os atores não são tão carismáticos. Você não torce por eles. Mim (Bianca Menti) não convence como apaixonante a ponto de ser disputada pelos dois amigos. Lucas (Eduardo Cardoso) é o melhorzinho mas nem assim. O problema está no roteiro? Talvez não apareçam tantas dinâmicas de amizade, e quando aparecem o triângulo amoroso já está avançado demais para te causar dúvidas.

. A história acontece numa cidade do interior, apesar de existir uma passagem importante em Porto Alegre. A lógica é de uma cidade pequena, onde todos se conhecem. Mas fiquei com a impressão que esses jovens estavam muito urbanos… Efeitos da globalização? Não chega a incomodar, é só uma constatação.

. Falta dimensão nos outros problemas que vão além do pai de Daniel. Não quero dar spoilers, então vou dizer de maneira vaga: Lucas parece OK com seu destino. Mim parece OK com o conflito moral. Até o violão de Mim é levado na brincadeira: ela gosta de tocar? Ou ele só foi inserido ali para a versão fofita acústica de Beat Acelerado do Metrô tocar na trilha? Ao deixar essas questões rasas, o filme faz justamente o que não queremos que um filme adolescente faça: tratar os problemas adolescentes como se eles fossem bobagem. E sinceramente: não me parecem bobagem MESMO, são temas que mexem com mobilidade social e crime!

. Mim não está em dúvida. Ela é um raro exemplo de mina lixo, o feminino de boy lixo. Só que, sem carisma, a gente fica com a impressão que ela é apenas uma cabeça oca bobinha. Por outro lado, a mãe de Daniel, Elaine (Janaína Kremer), pinta como algo inédito aqui: a mulher que fez uma escolha difícil e foi deixada para trás pelo homem. Tudo isso é apresentado na linha "são coisas da vida", e acho que essa parte é uma das que se salvam da narrativa. Kremer, junto com Caroline Guedes, é a melhor atriz do longa disparado.

. Alguma conjuntura fez faltar charme. Pode ser o conjunto dos itens acima, pode ser outra coisa. Mas tem algo a menos aqui.

Ah, importante dizer: Antes que o Mundo Acabe é baseado em um livro de mesmo nome de Marcelo Carneiro da Cunha. Ainda não li, então não saberia comparar nem dizer o quanto do roteiro vem dele.

Daniel, Mim e Lucas

Daniel, Mim e Lucas

Moral da história: assista aos três para valorizar o cinema nacional. Mas o terceiro… pode procrastinar.

Quem gostou desse post pode gostar de:
. A adaptação cinematográfica do clássico O Gênio do Crime
. Confissões de Adolescente, o áudiobook
. Essa fixação pelos anos 1980 nunca vai acabar?

Eurovision, o filme

Bom, a essa altura você sabe que eu sou fã do concurso anual Eurovision, certo?

Caso contrário:
. Uma thread no meu Twitter sobre o Eurovision
. O melhor do Eurovision 2020 (segundo eu mesmo)
. Lady Gaga tirou o look de Stupid Love do Eurovision 2019?
. Dschinghis Khan, a banda alemã com nome de imperador mongol que participou do Eurovision 1979 e que tem um hit que fala sobre uma cidade russa
. Conan Osíris, que concorreu no Eurovision 2019 representando Portugal

Isso posto: a Netflix acabou de estrear o filme Festival Eurovision da Canção: A Saga de Sigrit e Lars. É uma comédia e logo de cara a gente precisa levantar uns pontos.

Lars & Sigrit

Lars & Sigrit

. É um filme estrelado por um americano (Will Ferrell) e uma canadense (Rachel McAdams), com participações especiais de uma americana (Demi Lovato) e um irlandês (Pierce Brosnan).
. É um filme que me parece direcionado para americanos: didático (no sentido de “mastigadinho”), com um humor típico dos filmes do Will Ferrell.
. É um filme que não pretende ser sério – afinal, ele parte do festival de música mais kitsch do mundo. Isso posto, ele traz soluções de roteiro pueris. É quase infantil.
. É quase um musical: existem números musicais, mas são poucos. Ele fica meio em cima do muro, portanto pode desagradar quem não gosta de musicais e quem gosta também!

O filme começa assim, que tal?

O filme começa assim, que tal?

Então o filme é ruim?
Olha. Diria que é tão ruim que é quase bom. Ele é esquecível, uma comediazinha para assistir enquanto você almoça. A história é tão simples que, se você dormir no meio e acordar no fim, vai entender tudo mesmo assim.
Lars (Ferrell) é um cara islandês que sonha em ganhar o Eurovision. Quem o acompanha nesse sonho é Sigrid (McAdams). O pai de Lars (Brosnan) quer que ele pare de pagar mico e “vire homem". Um acaso faz com que eles concorram no Söngvakeppnin, o festival islandês cujo primeiro lugar vale uma vaga no Eurovision representando a Islândia. E aí, bem, empilhe os clichês para descobrir tudo o que acontece.

Lovato como Katiana, uma concorrente à vaga islandesa do Eurovision

Lovato como Katiana, uma concorrente à vaga islandesa do Eurovision

O que eu gostei do filme: surpreendentemente curti a cena meio Glee em que eles começam a cantar na casa do russo Alexander Lemtov (interpretado pelo inglês Dan Stevens). Apesar de odiar musicais, eu gosto do Eurovision e a cena é PURO Eurovision. Ela tem a participação de ex-candidatos do concurso e mexe com quem é fã – acho que o objetivo era mesmo esse. Bilal Hassani, Conchita Wurst, Jessy Matador, Jamala, Loreen, a minha querida Netta e mais. Lindo <3

Outra cena tocante e que os brasileiros vão se perguntar “uai, ele está cantando em português?" é a do cara tocando piano. Sim: ele está cantando em português. É o Salvador Sobral, o único primeiro lugar de Portugal no concurso em 2017.

Netta na sua participação no longa

Netta na sua participação no longa

Então o que eu particularmente não gostei?
Bom, americanos são trouxas, né? Desculpa, mas é real (os brasileiros também são, estamos quites). No longa existem menções a isso quando Lars interage com o grupo de turistas americanos. Só que o humor do filme não deixa de ser americano – passa BEM LONGE do europeu. Ele deixa ironias finas de lado para investir em imagens mais literais.
Acontece que o camp do festival não é forçado. As apresentações e os participantes estão ali em superproduções feitas para emocionar de verdade – e se você ri, o humor está nos olhos de quem vê. É inegável que existe o picadeiro, mas não é o caso sempre, e o longa falha em apresentar essas nuances.
O Eurovision é sobre o poder da música e o filme também pretende ser, mas como ele também quer se comprometer em ser um filme de Will Ferrell, ele não chega exatamente nesse lugar. E provavelmente nem no outro (não sou tão versado em filmes do Will Ferrell para ter certeza…).

A cena tipo Glee

A cena tipo Glee

Moral da história: assista sem esperar nada. E, se quiser, assista às edições passadas que o Eurovision está publicando no seu canal do YouTube. São mais longas, mas são mais legais.

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