"I'm not a Heather, I'm a Veronica": Heathers, que inspirou Ryan Murphy, que inspirou Heathers
It's just!
Se você ainda não assistiu a Heathers, o filme de 1988 que em português ganhou o infeliz nome de Atração Mortal, pare tudo e ASSISTA. Mas antes, um aviso: talvez você não goste. Nem todo mundo gosta. Heathers é comédia de humor macabro, brinca com valores com os quais muita gente ainda se identifica, mexe com a “instituição” bullying de um jeito que poucas (ou nenhuma?) obra de ficção conseguiu depois, e mais importante de tudo… fala de suicídio adolescente, que pode ser um gatilho para muita gente.
Avisos feitos, vamos lá. Vou tentar não dar spoilers, mas acho que pode rolar umas escapadas – você foi avisado.
Quem diria que ia dar certo? Pouca gente. O próprio roteirista Daniel Waters, em entrevistas, reconhece que foi ingênuo e não pensou nos efeitos que sua escrita poderia causar. Ele simplesmente escreveu o que queria ver. Na época, todos os longas teen clássicos de John Hughes já tinham sido lançados e portanto o "panteão mítico” do high school norte-americano já havia se espalhado pelo mundo via Hollywood. Antes de Heather Chandler (Kim Walker), existiu Benny (Kate Vernon) e suas amigas em A Garota de Rosa-Shocking; antes do jock Ram (Patrick Labyorteaux) tivemos os bullies Ian (Robert Downey Jr) e Max (Robert Rusler) em Mulher Nota 1000; antes do bad boy Jason Dean tivemos John Bender (Judd Nelson) em Clube dos Cinco.
E principalmente: antes de Winona Ryder tivemos Molly Ringwald. Uma nova it girl roubava os holofotes, e essa tinha um toque dark, próprio dos anos 1990 que chegavam. Se a princesa Claire (Ringwald) ficou com Bender no fim do Clube, isso era apenas um prenúncio da síndrome de Jean Grey: é para ela ficar com o Ciclope, mas o Wolverine lhe parece estranhamente irresistível…
Ringwald de certa forma fez isso com o roqueiro moderno Dweezil Zappa, mas Winona ultrapassaria essa marca: enquanto Veronica Sawyer participava efetivamente da trama ao forjar o bilhete de suicídio de uma das Heathers (ela no mínimo poderia ser acusada de cúmplice), a atriz em si namoraria com Slater (em algum momento das filmagens ele deixaria a então namorada Walker para ficar com Ryder), Johnny Depp, David Pirner (o vocalista do Soul Asylum)… E, principalmente, ELA MESMA tomaria o papel de bad girl ao ser presa roubando na Saks. Sua posição de musa cult depois de Edward Mãos de Tesoura (1990), Caindo na Real (1994), Garota Interrompida (1999) e principalmente o próprio Heathers confunde personagem e vida real e a deixa sujeita à empatia e identificação pela Geração X, que simplesmente trocou Molly por ela. Não que Molly fosse menos moderna ou carismática… Os anos 1990 pediam por algo mais grunge, simplesmente. Menos perfeito.
E o mesmo pode ser dito sobre Heathers em si. Regina George (Rachel McAdams) em Meninas Malvadas é basic bitch perto das Heathers. Elas são o molde real das outras. O menor exagero no bullying confrontado com elementos estranhamente sedutores (críquete? frases maravilhosas que a gente nunca acreditaria que saíram da boca de uma garota do Ensino Médio porque são mais apropriadas para uma bicha de um conto de Caio Fernando Abreu?) fazem Heather Chandler ser mais realista e assim ficar ainda mais odiosa.
Jason Dean, ou JD, vem para completar o cenário. Fora a comparação óbvia com James Dean, o rebelde sem causa ainda vem com uma referência bônus escondida. O livro que Heather Duke (Shannen Doherty) lê é Moby Dick por motivos financeiros: a ideia inicial seria que ela estivesse lendo O Apanhador no Campo de Centeio. Fora o fato do livro de JD Salinger (olha aí, JD, hein, hein) ser cult, tipo existencialismo para adolescentes, ele era (e é) um pedido comum de leitura das aulas de literatura norte-americana do high school dos EUA. Mas Salinger não quis ceder os direitos – e Moby Dick virou a nova pedida porque seus direitos tinham expirado, já era domínio público. Para quem não está familiarizado, Moby Dick tem mil simbolismos discutidos ao longo dos anos (não é à toa que é um clássico), entre eles a discussão de valores morais da sociedade, a sede por dinheiro corrompendo as relações, os limites da humanidade e por aí vai. Faz sentido.
Heathers foi considerado um fracasso de crítica e de bilheteria na época do seu lançamento. A redenção só veio depois, em vídeo, quando o filme foi se transformando num clássico cult e teve impacto na cultura pop comparável aos hits de Hughes. Frases e expressões que Waters inventou viraram realidade na boca dos adolescentes, Heather virou um substantivo para a gente se referir a bullies ricas e o filme se transformou em inspiração para, bem… Ryan Murphy. Porque afinal o longa é a cara do Ryan Murphy (na minha opinião, um pouco menos glamouroso, menos mainstream, menos superproduzido e por isso mais legal, mas você entendeu).
Ryan Murphy: origins
No começo, era Popular. A série de duas temporadas que Murphy criou com Gina Matthews e passou na TV americana entre 1999 e 2001 já trazia uma discussão sobre popularidade no Ensino Médio. De um lado a cheerleader Brooke McQueen (Leslie Bibb), do outro a nerd Sam McPherson (Carly Pope), cada uma popular em seu "segmento" – elas se vêem forçadas a conviver quando o pai de uma e a mãe de outra começam um relacionamento. Com isso, essa turma toda precisa aprender a socializar, já que Brooke e Sam passam a morar na mesma casa. Ou seja: já existiam umas Heathers aqui, sim?
Mas o sucesso de Ryan viria na forma de Nip/Tuck (2003-10), sobre uma dupla de cirurgiões plásticos. E a consagração? Glee (2009-15).
Bom, não vou falar da Naya Rivera nem da Lea Michele porque não é essa a ideia. Mas enfim: RIP Naya, Lea quem-se-importa-com-essa-tonta.
Queria atentar que, por mais que na sua extensão Glee tenha se transformado numa novelinha musical besta, no começo ela tinha um pulo do gato muito interessante: o seu foco seria na Martha Dunnstock, e não exatamente nas Heathers (apesar de, sim, as cheerleaders Cheerios serem Heathers). Ou seja: o foco era nas vítimas de bullying. Em parte, o tema central eram os conflitos entre os populares e os "esquisitos", os marginalizados, mas acima de tudo as lentes estavam nas vítimas mudando de papel num subgrupo dentro da escola: o coral. No caso de Rachel Berry (Lea Michele), ela vai de zoada à rainha da cocada preta. Eles constroem uma outra hierarquia à sua maneira e à parte da estrutura social da escola toda.
E bom, existia o fato de ser um musical, coisa que eu não aguento, mas com Glee eu tinha aquele guilty pleasure de querer saber o que ia acontecer com aquele bando de personagem raso em tramas e reviravoltas ridículas mesmo tendo que aguentar versões pasteurizadas de músicas em sua maioria boas.
Como a gente está falando de bullying, é claro que Heathers pairava como uma referência em cima de Glee. Mas Murphy citou Heathers nominalmente em entrevista depois, em 2015, na sua nova aposta na época… Scream Queens (2015-16).
No lançamento, grande parte das manchetes foi dominada pela participação de Ariana Grande (como Chanel nº 2) e Nick Jonas (como Boone) na primeira temporada, mas a presença de Jamie Lee Curtis (num papel estranhamente parecido com a Sue Sylvester de Jane Lynch em Glee, um dos fatores que reforçam a crítica a Murphy de que ele se repete muito) e o próprio título conecta a série a filmes de terror adolescente, mais especificamente à franquia de Halloween na qual Curtis fazia uma scream queen em si. Scream queen virou uma expressão para as "mocinhas” desses longas que não fazem muito mais do que gritar e fugir do assassino, alvo de crítica porque esconde um machismo ao colocar a mulher sempre no papel de vítima indefesa e incapaz. É mais complexo que isso (tem scream queen que mata o assassino sozinha), mas resumidamente é por aí!
Na série, assim como no filme Heathers, os papéis se confundem. Nenhuma menina aparece gritando em Heathers. E Veronica Sawyer está longe de ser uma vítima, apesar de se vitimizar. Em Scream Queens elas gritam, até demais. Mas sempre fica a dúvida: elas são vítimas ou são serial killers?
Em plena Comic-Con, Murphy declarou em 2015 que Scream Queens era um encontro de Halloween e Heathers. O maior aceno de todos está na turma das Chanel, liderada por Chanel Oberlin (Emma Roberts). Ao contrário das Heathers, que por coincidência têm o mesmo nome, na série as outras Chanel mudaram de nome a mando da primeira, sendo apontadas como Chanel nº 2, 3, 4… O verdadeiro nome de Chanel nº 5, por exemplo, é Libby Putney (Abigail Breslin).
Uma mudança importante é que Scream Queens se passa numa universidade. O que é bem esquisito, já que os dramas e a trama continuam sendo adolescentes demais.
O fator “adolescentes assassinos” grita Heathers (desculpa o trocadilho). Mas Murphy tirou algo muito importante da fórmula: a simulação de suicídio. Já fica óbvio, logo de cara, que existe um serial killer entre os personagens.
Nesse meio tempo, em 2010, e talvez olhando para o sucesso de Glee, cometeram uma coisa que, eu sei, tem muitos fãs, mas eu acho um grande cocô fedido… Heathers: the Musical.
POR QUE OS NORTE-AMERICANOS PRECISAM TRANSFORMAR TUDO EM MUSICAL, CAZZO???
Heathers: the Musical estreou em 2014 em Los Angeles. A história é basicamente a mesma só que com música. Dói demais.
Só que virou mais um cult. Sinceramente, como costumo observar as pessoas que estão ao meu lado nas trincheiras, nem todo mundo que ama o filme gosta do musical e isso já diz muita coisa. Para mim, ele pensa demais no mainstream. É Murphy demais. O humor macabro perde muito da sua ironia fina. As músicas que exploram o sentimento dos personagens (e portanto são sentimentalistas) tentam explicar demais, deixam tudo mastigadinho e sem lugar para interpretações. Tudo ganha um ar de moralismo fake. Praticamente vira um similar do hit fictício do filme original Teenage Suicide (Don't Do It).
O musical ganhou diversas montagens. Em 2019, chegou no Brasil.
Riverdale, aquela série besta, ganhou um episódio na sua terceira temporada (2019) em que a escola vai montar o musical (existe uma versão especial de Heathers: the Musical para montagens escolares desde 2016, tipo "censura livre", com cortes e adaptações). Eu assisti ao episódio para você não ter que passar por essa tortura. É como um Glee com personagens de Riverdale, ou seja, um dos sinais do apocalipse. Eles não disfarçam as obviedades no casting, como Cheryl Blossom (Madelaine Petsch) no papel de Heather Chandler e Betty (Lili Reinhart) e Veronica (Camila Mendes) fazendo as outras Heathers. Veronica Sawyer é interpretada por Josie (Ashleigh Murray), mas eu acho que tem uma música que era pra ser dela e é cantada pela… Veronica da Camila Mendes. Risos. Ah: e quem assume o JD é Sweet Pea (Jordan Connor) e não Jughead (Cole Sprouse), como os fãs poderiam esperar, ou mesmo Archie (KJ Apa).
Enfim: better to be gently fucked by a chainsaw do que assistir isso.
(Desculpas sinceras para minha sobrinha Gabriela, eu sei que ela gosta)
Enquanto isso, depois de Scream Queens e de 13 Reasons Why (2017-20), parece que liberou. Em 2009, surgiram as primeiras notícias de que Heathers, mesmo envolvendo o tabu do suicídio adolescente, viraria uma série de TV pela Sony. Em 2012, surgiu um papo de que seria uma série da Bravo. Mas a coisa ainda demoraria a engrenar. Ela viria pelas mãos da Paramount, mas sofreria adiamento e cortes por causa de mais tiroteios em escolas dos EUA. Querendo evitar cutucar o vespeiro, a Paramount postergou a estreia o quanto pode. O primeiro trailer só saiu em 2018.
A série Heathers que não é de Murphy – mas poderia, em suas qualidades e, principalmente, seus defeitos
O trailer sofreu uma saraivada de críticas. Era pra tanto? Bom… se o filme já desperta opiniões fortes, a favor ou contra, a série jogou gasolina em tudo.
Logo de cara as coisas ficam confusas. Ao mesmo tempo que a série é um reboot, com praticamente todos os personagens reinventados mantendo seus nomes e as frases que fizeram tanto sucesso na obra original, quem conhece a primeira versão fica confuso ao ver ela…
Sendo que ela era ela…
Ué???
Acontece que a participação de Doherty é só uma graça, um dos vários acenos que a série faz para o filme. O papel dela é da mãe de JD (James Scully). Só que ela tem o clássico frufru vermelho símbolo da menina mais popular da escola no filme original (a princípio Heather Chandler). Tá vendo na foto? Existe uma brincadeira no longa de que Heather Chandler sempre escolhe o taco vermelho no críquete, mas isso era bem sutil – no musical o vermelho vira “a cor” de Chandler e, em Riverdale, a “possessividade” do vermelho é explorada com Cheryl Blossom.
O frufru da mãe de JD acaba com Veronica na série.
Essa nova versão de Heathers faz brincadeiras tipo fan service. Umas mudancinhas. Algumas funcionam e outras não. Quem joga críquete com Veronica é Betty Finn (Nikki SooHoo). E Veronica quem manda. Ela sempre quer o taco azul.
Mas o principal é que num mundo pós-Glee e politicamente correto, com celulares e a sede por seguidores e likes, o conceito de popularidade adolescente não é mais o mesmo de 1988. O novo Heathers incomoda porque faz troça do discurso politicamente correto, da representatividade, do que a gente valoriza hoje. A pobre cheerleader é secundária, quase figurante. E Heather Chandler é gorda, body positive, cool, artsy… e ainda assim uma desgraçada que faz bullying. Sim, o feitiço virou contra o feiticeiro; a minoria ficou popular e é quem manda – a cena em que um pai chora no filme, dizendo que tem orgulho do seu "filho homossexual morto”, vira uma cena em que o pai chora dizendo que tem orgulho da sua "filha heterossexual morta".
Hum… É engraçado, mas por quê? Não é uma forma de embutir que as ideias progressistas talvez estejam “exageradas demais"? Não curto essa onda. Talvez por que me sinta atingido? É bem complexo. Mas não me parece certo fazer comédia sobre conquistas das minorias de uma maneira tão sinistra e insensível.
Ah, sim: e se você não percebeu, Heather Duke é gender fluid (atende pelos pronomes ela/dela) e Heather McNamara é negra e lésbica.
Veronica? É uma garota branca, loira, de olho claro, normal. Não é careta mas tem todos os privilégios que poderia.
A série não segue a história do filme, mas trata dos mesmos temas. E é bizarramente Murphy, apesar dele não estar envolvido na sua criação. Simplifica questões, resolve conflitos de maneira pueril, faz reviravoltas folhetinescas absurdas. E tem momentinhos musicais (ARGH). O descaso é tanto que um dos personagens que morrem no fim de um episódio não causa impacto nenhum no episódio seguinte; a sua morte é citada, meio por cima. Sem drama, ninguém ficou exatamente chateado, feliz ou minimamente atingido. Seria um statement se isso acontecesse com as outras mortes de maneira similar – e não, as outras mortes são encaradas de maneira muito mais importante.
A mensagem que fica é mais ou menos "ninguém é inocente". Do tipo “o sonho do oprimido é ser um opressor".
Pra mim, até uma das sacadas mais legais do roteiro, que coloca o JD com um discursinho meio 4chan, quase incel, é estragada pelo exagero – tem uma hora que você não aguenta mais ouvi-lo falando. Nem a Veronica!
Uma das únicas coisas que realmente prestam é… Selma Blair. Ela faz a madrasta de Heather Duke, uma prostituta vulgar que é bem estereotipada mas ao mesmo tempo maravilhosa.
E o fim? Bom, Heathers, o filme, tinha um fim previsto que acabou sendo descartado porque os produtores acharam que era pesado demais para um filme adolescente. Na versão pasteurizada da série, eles conseguiram reproduzir mais ou menos esse fim original. E é ruim demais, viu?
Ruim demais.
Depois não vai dizer que eu não avisei.
Heathers, a série, está disponível na Globoplay.
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