Raised by Wolves é tudo – amém!
Raised by Wolves não está muito comentada aqui no Brasil principalmente porque não está disponível pros brasileiros – é uma série da HBO Max. Mas sou fã do Ridley Scott e meu marido também, então "corremos atrás” dessa série de ficção científica produzida por ele e com os dois primeiros capítulos dirigidos por ele.
Ao mesmo tempo, é aquela coisa, né: essa história de chegar num novo planeta com perigos, hummm, já vimos Scott fazendo antes. E ele costuma se repetir pra além da conta. Então a gente chegou com um pezinho atrás. Mas existe um segredo em Raised by Wolves: o criador dela não é Scott e sim Aaron Guzikowski.
Existem elementos em comum com o trabalho anterior de Scott, claro: andróides, criaturas alienígenas animalescas e violentas, as câmaras de sono, os cenários extraterrestres com uma devastação pós-apocalíptica. Mas tem um elemento principal aí que muda quase tudo e que não esteve presente de forma tão primordial em algo ridley-scottiano antes: a religião organizada e a fé em um mito ancestral.
Na franquia de Alien, uma mitologia mais completa só foi aparecer bem depois, com os mais recentes Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017), que ainda podem (devem?) ser completados com mais um, formando uma trilogia de prólogo. Antes, o alien era uma criatura extraterrestre parasitária e letal e pronto, o inimigo estava ali, o desafio dado era conseguir fugir dessa colônia horrorosa sem que esses bichos conseguissem se espalhar por outros planetas e, principalmente, sem que uma rainha-mãe chegasse na Terra. Outro desafio das tramas eram os militares ou representantes do governo, que viam nos aliens uma oportunidade de uma arma poderosa na guerra e não entendiam que os aliens são incontroláveis. Quem ousava querer um alien pra chamar de seu geralmente acabava tomando do próprio veneno, morto por algum deles.
Já em Raised by Wolves a gente percebe uma clara vontade de criar um universo particular que vai servir para discutir de maneira metafórica as instituições religiosas e o que permeia a fé humana ao mesmo tempo que constrói uma história mítica em si. Tudo começa com dois fatos: uma guerra santa faz uma grande nave, a arca, sair da Terra com colonizadores em direção de um novo mundo, o Kepler-22B. Esses colonizadores são da religião oficial que cultua um deus Sol, os mitraicos (o Mitraísmo curiosamente existiu de verdade na nossa história terrestre, entre os séculos 3 e 4 na Roma antiga). Ao longo da série, também são citados Rômulo e Remo, em referência clara à origem mitológica de Roma com os irmãos fundadores que foram amamentados por uma loba.
Ao mesmo tempo em que essa arca decola, também está saindo uma outra nave, essa com dois andróides, a Mãe e o Pai (Abubakar Salim), e seis embriões humanos. A ideia do homem que coloca esses andróides pra embarcar é que eles colonizem e garantam um futuro pra humanidade sem guerra – esse cara é ateu e programa os andróides para que eles criem essas crianças como ateias, evitando assim conflitos religiosos. O azar: essa nave também está programada para ir pra Kepler-22B.
Outra curiosidade: Kepler-22B também existe na vida real. Ele foi o primeiro descoberto pela Nasa como teoricamente habitável, baseando-se na distância entre ele e a estrela do sistema em que está.
A Mãe vê os mitraicos como inimigos. Um dos grandes plot twists é que ela não é apenas maternal: guarda dentro de si uma outra essência que, aliás, lembra a mulher-robô do clássico Metrópolis. Scott na verdade aponta como referência a estátua que fica no Rockefeller Center de Nova York. E a posição dela, de braços abertos e pernas unidas, obviamente nos lembra da crucificação de Jesus (tem outro momento que ela fica na mesma posição).
Terra prometida, serpentes (aqui elas são gigantes), sacrifícios, fogo como símbolo do divino, milagre, privações e êxodos no deserto, vozes e visões (que podem ser mensagens do divino… ou esquizofrenia?): tudo isso vai pipocando ao longo dessa primeira temporada. Também rola falibilidade de líder religioso, crime em nome do deus deles, intolerância contra qualquer outra crença (ou a falta de crença). Soa bem, hum, contemporâneo. Infelizmente.
Mas um traço que é BEM Ridley Scott na série é o androide e a questão: até que ponto eles não têm sentimentos de empatia e outros traços humanos, como o ciúme, a tristeza perante a rejeição, o instinto materno? Essas características humanas seriam programáveis? E será que não seriam corruptíveis? Não se desenvolveriam e se transformariam em outras coisas, tal qual acontece nos próprios humanos?
Já foi confirmada uma segunda temporada de Raised by Wolves. Mal posso esperar!
Se você gostou desse post, pode curtir esses outros também:
. Messiah, Dois Papas e uma reflexão sobre a minha visita ao Vaticano
. Quando a ficção mostra ruas vazias – e uma peça de teatro online em plena quarentena
. Extraterrestre soviético? O que eu achei do filme russo Sputnik