O dia em que a música afro encontrou o BRock
Estou meio viciado em BRock nessa quarentena, deu para perceber? O som jovem dos anos 1980 já foi apontado como reflexo de diversas coisas: a trilha da reabertura política, uma resposta à MPB que surgiu nos festivais e que não falava a língua da nova geração, uma combinação explosiva de Circo Voador + rádio Fluminense + o filme Menino do Rio + juventude entediada em Brasília + punks de SP e outras maravilhosas incidências.
Só que o BRock batia bastante na tecla do punk, do pós-punk, sons darkzões. Lá fora, tinha rolado também a incidência forte do reggae, que por aqui foi deglutida e festejada principalmente por Gilberto Gil, mas que praticamente não respingou nas bandas jovens que surgiram fora uma ou outra exceção (os Paralamas, por exemplo).
E foi no meio da Brasília de Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude, tudo politizado e angustiado, que surgiu um sol. O Obina Shok sonoramente era mais próximo do axé da Bahia que do rock dos colegas – talvez seu único primo na turma era o supracitado Paralamas do Sucesso, que já estava estabelecido no Rio.
Para dar uma localizada: o Magia de Luiz Caldas, que tinha Fricote, saiu em 1985, Sarajane abriu a roda em 1986, o disco de estreia de Daniela Mercury veio em 1992 – recomendo o documentário Axé: Canto do Povo de um Lugar, que está na Netflix e todo mundo que curte música brasileira devia assistir. Ao mesmo tempo: o primeiro do Legião também saiu em 1985, o do Capital sairia em 1986 e o incrível EP da Plebe, O Concreto Já Rachou, veio em 1985. Paralamas já havia lançado dois álbuns quando soltou Selvagem? em 1986 com Alagados.
Obina Shock já aparecia diferente de tudo porque, além da inspiração claramente afro (juju music, highlife), era uma banda com estrangeiros. Jean Pierre Senghor é neto de ex-presidente do Senegal, filho do embaixador do país e, adivinha, senegalês. Roger Kedyh era gabonês exilado. Winston Lackin era do Suriname e estava estudando no Instituto Rio Branco, a reconhecida escola brasiliense de diplomacia e relações internacionais. Juntaram-se a eles os brasileiros Henrique Hermeto, Maurício Lagos, Sérgio Galvão e Hélio Franco. A banda, assim como as outras, mandou uma demo para a carioca Fluminense FM, a emissora de rádio apelidada Maldita. E o pessoal gostou de Lambaréne (que, aliás, é o nome de uma cidade do Gabão).
Por que a gente fala que o Obina Shok é BRock? Bom, eles eram contemporâneos das outras bandas e fizeram o mesmo caminho, apesar do estilo musical cheio de suíngue diferente do resto. E esse caminho era a Maldita, show no Parque Lage com produção da galeria do Circo Voador e contrato com gravadora. Em myene, uma das línguas (e dos povos) do Gabão, obina shok quer dizer algo como “união da dança".
(Outra ponte do Obina Shok com o BRock é o guitarrista Henrique Hermeto em si. Ele chegou a tocar em uma banda chamada Os Metralhas, antes do Obina, com André Muller, que virou baixista da Plebe, e Marcelo Bonfá, que virou baterista do Legião.)
Quando o disco saiu em 1986, Obina Shok já tinha renome entre os iniciados. Tanto que a música de trabalho, a maravilhosa Vida, tem as participações de Gal Costa e Gilberto Gil nos vocais.
Tudo, né? O ombrinho só no sacode.
E é tão tudo que a rainha Alcione chamou os caras para um especial dela na Manchete, Fruto e Raiz, no mesmo ano de 1986.
Vida é o maior hit da Obina Shok, indiscutivelmente. Foi regravada pelo próprio Gil em 1987, por Elba Ramalho com Lulu Santos em 1991, pelo Ara Ketu em 2000 e por Gil novamente com sua filha Preta Gil em 2011 (num medley com Andar com Fé).
O primeiro álbum tem dedo do Kedyh em quase todas as composições. Vida, por exemplo, é dele com Maria Juçá, a produtora-diretora do Circo Voador. Lambaréne é dele, sozinho. A única gravada que não tem co-autoria dele é o reggae Africaner Brother Bound, um libelo contra o apartheid de Senghor, Hermeto e Gil, que também participa dessa faixa.
Apesar do sucesso do primeiro álbum, Maurício Lagos e Sérgio Galvão saíram do grupo. E sabe quem entrou? Nada menos que… Nara Gil.
Sim: a filha mais velha de Gil, meia-irmã de Preta, Bela e Bem não foi apenas a DJ Black Boy de Armação Ilimitada – papel tão perfeito que ela nunca se livrou dessa referência, mesmo depois de tanto tempo!
Nara nunca lançou um disco próprio. Mas já fez várias coisas ao lado do pai. Tipo… essa versão de Haiti no canal de YouTube dele!
Bom, voltando: Nara fez parte da formação do Obina Shok no segundo álbum mas Salleé, de 1988, flopou. Uma pena. Não está nem no Spotify e em vinil é mais caro e mais raro que o primeiro.
O que rolou depois?
Senghor tocou com Marisa Monte, Jorge Vercillo e estava na cozinha do primeiro disco do Cidade Negra, Lute Para Viver (1990), nos teclados da maior parte das faixas. Ele acabou virando quase fixo da banda – quase sempre estava lá, apesar de não aparecer muito em créditos de gravações. Em 2010, voltou de mala e cuia para Dakar. Apresenta um programa na rádio senegalesa chamado Hora do Brasil – olha o artigo do UOL sobre ele publicado nesse ano.
Kedyh, que tinha problemas de saúde, voltou para o Gabão e morreu lá em 2018 – teve um AVC fatal.
Lackin virou um político bem importante do Suriname. Foi ministro de relações exteriores do país entre 2010 e 2015. Morreu em 2019.
Um clique do Facebook de Henrique Hermeto:
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