É uma questão de energia
A energia elétrica ganhou várias simbologias ao longo da pequena história da humanidade. Para quem não sabe, a palavra eletricidade vem do latim electrum, que por sua vez quer dizer “amante do âmbar”. Isso porque na Antiguidade fazia-se experimentos sobre essa energia esfregando âmbar contra a pele!
É por isso que a música de Adriana Calcanhotto que Maria Bethânia gravou, Âmbar, tem uma letra que remete à energia elétrica, ao aceso, ligado, plugado.
Isso é só um exemplo. A gente fala "fiquei aceso a noite inteira"; as bebidas estimulantes são chamadas energéticos e invariavelmente trazem raios e eletricidade nas suas campanhas publicitárias e embalagens; quando alguém fica muito agitado dizemos que "tá ligado no 220".
Uma das minhas obras de ficção favoritas de cyberpunk também é toda centrada nisso. Electric Dragon 80.000 V (2001) é um média metragem dirigido por Sogo Ishii.
O filme é P&B apesar de ter sido produzido no começo desse milênio e tem um toque tokusatsu: o personagem principal, Morrison, interpretado pelo gato Tadanobu Asano, tem poderes. E existe um outro cara, que funciona como um vilão (mas no fundo acho que não tem vilão e mocinho aqui): o Thunderbolt Buda (Masatoshi Nagase) tem um visual super babadeiro, com metade do rosto em metal. A sua motivação para brigar com Morrison? “Eu queria ver você irritado". Atrevidíssimo!
Morrison foi atingido por altas voltagens de energia desde pequeno. Isso faz com que ele consiga controlar a eletricidade (ou, dependendo do ponto de vista, descontrolar). A trama é cheia de imagens simbólicas como dragões e, creio eu, traz uma homenagem ao The Lizard King – ele mesmo, Jim Morrison.
Para quem não sabe: Lizard King foi uma das corruptelas que o próprio Jim Morrison se deu. O alter ego apareceu pela primeira vez na capa do álbum do The Doors Waiting for the Sun de 1968, num conjunto de poesias que foi impressa mas não foi lançada nesse álbum: Celebration of the Lizard. A ideia era incluir a performance de Celebration of the Lizard, que tinha uma pegada spoken word, no lado B de Waiting for the Sun, mas essa performance, captada ao vivo, acabou vindo a público apenas no álbum Absolutely Live, de 1970. Entre as coisas que o roqueiro diz, está: I am the Lizard King, I can do anything. É uma pegada bem "faça o que tu queres porque tudo é da lei", né?
O Morrison do filme cria lagartos. E extravasa a energia elétrica acumulada na sua guitarra.
A visão da guitarra elétrica como o estrangeiro, que esteve presente no Brasil com a infame Marcha contra a Guitarra Elétrica de 1967 liderada por Elis Regina (depois ela gravaria várias músicas que contam com o instrumento), também fez parte do cenário musical no Japão mais ou menos na mesma época. Os GS, ou Group Sounds, era um fenômeno pop nipônico que bombou entre o meio e o fim dos anos 1960. Essas bandas de rapazes, totalmente influenciadas pelo show dos Beatles na mítica arena Budokan em 1966, cantavam muito em inglês e a música era considerada pouco autêntica: primeiro porque era o rock dos norte-americanos que ocuparam e dominaram militarmente o Japão da Segunda Guerra, e segundo porque eram grupos "superproduzidos" apontados como vendidos e não como "verdadeiros artistas". Muita versão de música estrangeira em inglês (ao contrário da Jovem Guarda, que fazia versões na língua nativa), muita ocidentalização até no visual. Era a questão da autenticidade.
Isso tudo não faz justiça aos Group Sounds: eles fizeram técnicas de gravação do país avançarem e trouxeram uma contemporaneidade que depois se refletiria, inclusive em contraponto, em algumas das coisas mais legais da música pop japonesa como o folk e a new music. Sem Group Sounds talvez não existira o City Pop. Falei um pouco de City Pop nesse episódio do Quatrilho no meu podcast:
E, claro, a ligação entre a guitarra elétrica e a delinquência juvenil aconteceu dos dois lados do mundo. Minha filha é um caso sério, doutor. Rock é coisa do capeta.
Mas antes, preciso falar também de outro dragão.
Será que Shiryu de Cavaleiros do Zodíaco também é uma inspiração do Electric Dragon 80.000 V ?
Para muitas crianças, Cavaleiros do Zodíaco foi a porta de entrada para a mitologia grega e as casas zodiacais. A quantidade de simbologia embutida nele era disfarçada com lógica parecida com a dos Super Sentai: cada personagem tinha algum "elemento" que os dava poder; a união faz a força; uma lambança de termos como cosmo interior, armadura de bronze, de prata, de ouro; o bem deve vencer o mal; e ainda incluía a astronomia (cada cavaleiro se refere a uma constelação).
Shiryu era um dos mais queridos – tem muita mulher que eu conheço que assistia a Cavaleiros do Zodíaco olhando para aquele cabeludo, meninas nervosíssimas como se estivessem vendo um show de Bon Jovi, Guns 'n’ Roses ou algo assim. Sim: Shiryu era sex symbol, uma espécie de rock star cego e careta sem guitarra. Shiryu era o Change Griffon do Cavaleiros, se é que me entendes (e eu sei que me entendes).
E eu? Respeita a minha pessoa, não vou ficar entregando as minhas intimidades assim! HAHAHAHAHAHA!
Voltando para o revoltadíssimo Morrison:
A distorção do som é símbolo e extravasamento da dor e revolta desde que existe distorção. Os poucos acordes do punk, por mais cooptados que tenham sido pelo mercado, ainda fazem parte do repertório da revolução. Sogo Ishii tem outras obras menos fantasiosas e mais centradas na música que vão nessa mesma linha de pensamento.
E isso me lembra também um dos episódios de O Inexplicável, o programa apresentado por William Shatner no History. Ele conta a história de uma mulher que foi atingida duas vezes por raios e sobreviveu. Não só: ela de alguma maneira sente a energia elétrica de maneira mais intensa que a gente. Morrison da vida real.
Quando me perguntam sobre religião e no que eu acredito, digo que sou agnóstico. Acredito em algo que não sei explicar bem o que é: energia. Mas não é necessariamente energia elétrica: é algum elemento que fica, que paira e se movimenta, alguma coisa que ainda poderá ser explicada pela física. Se nada se perde e tudo se transforma, o que acontece com os nossos pensamentos? A nossa consciência?
A energia também é sexy. Né?
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