O catolicismo e o cristianismo: Messiah, Dois Papas, minha visita ao Vaticano, #wakeupolive e tudo e tal
Que azar o do Papa Francisco: em plena campanha de divulgação de Dois Papas, o novo filme de Fernando Meirelles que está na Netflix (e que não conta com Ilze Scamparini, um crime), ele vai lá e dá dois tapas na mulher que agarrou sua mão sendo filmado. Todo mundo perdeu a paciência com 2019 - até o papa "bonzinho", o papa "progressista", o papa do povo.
Muitas aspas nessa hora, a gente chega lá.
A saber: o Papa Francisco pediu desculpas. Disse na primeira missa do ano na Basílica de São Pedro: “Muitas vezes perdemos a paciência. Eu também. Peço perdão pelo mau exemplo de ontem.” E ainda falou sobre violência da mulher.
E a saber: eu fui no Vaticano no dia 27/12, um pouco antes dos Dois Tapas. Não vi o papa. Mas vi uma propaganda bem grandona do filme Dois Papas bem perto da praça de São Pedro, mais especificamente na entrada dela do lado direito. Que atrevidos, não? Chocado!
Aliás: vi Dois Papas um pouco antes de embarcar para Roma. Isso foi, como podem imaginar os que assistiram ao filme e já foram ao Vaticano, BEM interessante. Mas vamos começar um pouco mais de trás, porque gostaria de contextualizar vocês antes de sair dando opinião.
A minha formação católica
O lugar de congregação para mim nunca foi a igreja, apesar da família tanto por parte de pai quanto de mãe ser católica. Tive até um tio padre. Mas não me lembro de me sentir parte de um grupo na igreja - ela era mais uma obrigação aos domingos. Não me relaxava nem me inspirava repetir palavras decoradas que eu até entendia o significado, mas não necessariamente concordava. Fiz primeira comunhão e crisma bem alheio, mais para não confrontar minha mãe. E estudei durante toda a minha vida em colégio católico, com aulas de religião. A minha relação com todo esse conhecimento virou mais de interesse histórico; e hoje eu me diria agnóstico, rezando às vezes e somente para agradecer (porque me sentiria muito interesseiro se rezasse para pedir, já que não me dedico tanto a esse lado espiritual kkkkkk). Na maior parte do tempo, penso que se existe uma força maior, se ela é ciente e existe um plano dela, me resta confiar no plano. Que argumento contrário eu teria? Nem sei qual plano é esse. Então, que seja; vou agradecendo as alegrias, as oportunidades, e me incluo, porque acho que a força maior, na minha crença, inclui a todos.
Portanto entendi a Anitta quando ela agradeceu a si mesma… HAHAHAHAHAHAHAHA
Isso posto, voltando ao meu interesse histórico: tudo que cai na minha mão sobre catolicismo, judaísmo, islamismo… LEIO. Assisto. Devoro. Interessa-me sobretudo o Jesus histórico, essa figura que provavelmente eu seguiria pois SOY REBELDE kkkkkkk Nessa parte, entre livros que já li, recomendo:
Devo ter esquecido algum. Enfim.
Ao filme!
O filme Dois Papas
Muito já foi dito, e portanto não vou me estender a respeito, sobre o caráter ficcional do longa. Sim, porque apesar de trazer personagens reais, para começo de conversa não existe nenhuma evidência que o encontro entre o Papa Bento 16 e o na época o Cardeal Jorge Bergoglio sobre o pedido de aposentadoria do segundo realmente aconteceu, e é nisso que o filme está centrado. Assim como a Rainha Elizabeth 2ª que a gente vê em The Crown é uma versão da personalidade histórica real, aqui os protagonistas são versões criadas pelo roteirista Anthony McCarten que simbolizam dois vieses da igreja católica apostólica romana atual. E, olhe lá, mesmo aí existe certa polêmica: Papa Bento 16 é retratado como cartesiano, acadêmico, conservador, tradicional; e o futuro Papa Francisco simboliza a renovação, a adaptação aos novos tempos, um maior despojamento e um maior diálogo com os seguidores.
Na vida real, há controvérsias. Um exemplo é o envolvimento de Jorge Bergoglio com a ditadura argentina (o filme não esconde esse episódio, mas alguns defendem que o maquia e suaviza bastante, humanizando-o e omitindo fatos). E não exageremos: é claro que a figura de Papa Francisco (o real) é nitidamente mais simpática, carismática, do que a de Papa Bento 16 (o real também); isso não quer dizer que ele está ali para revolucionar a igreja. Já se passou um tempo para isso e ele não o fez; assuntos como o celibato, a exclusão de mulheres no sacerdócio e a homossexualidade vista como pecado não avançaram, apesar de terem sido postos em discussão. Acho exagero até chamá-lo de reformista. Não fez reforma concreta alguma. Vai fazer, ainda? Sinceramente acho que não.
Então, resumidamente, o longa coloca os dois como avatares de alas opostas da igreja e, fazendo-o, pinta o Papa Francisco de uma cor muito mais dourada e reluzente. A cor cai bem para a figura pública real; já o recheio… não fantasiemos.
Acho Dois Papas bom pelas discussões que desperta e estimula, e não como narrativa histórica. O chamado para o sacerdócio, a fé (e o questionamento dela; questionar a fé é traí-la ou reforçá-la?), o papel e o comportamento da igreja em acontecimentos sociais que afetam seus fiéis e o mundo.
O que espera-se de um papa? Certamente a questão do abuso sexual infantil na igreja é quase evaporada do roteiro. Na hora em que ela é endereçada de maneira concreta, a voz de Anthony Hopkins some, o que a gente vê é um sobe som. Corta para Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce) indignado. Subentende-se que Papa Bento 16 sabia de tudo e não tomou uma atitude mais concreta e energética a respeito (o que é provavelmente verdade). Varreu-se para baixo do tapete, e consequentemente mais crianças ficaram à mercê de abuso. Mas isso que estou dizendo não é dito com todas as letras no roteiro. É como um mistério de Fátima. É como se continuasse sendo um segredo. E não é mais, no mundo: todos sabemos, saíram reportagens, foi (e é) um escândalo.
Emblemático o filme acabar em futebol. Não me entendam mal, eu gostei muito: interpretações impecáveis, narrativa envolvente, questões importantes. Mas no quesito moral, a problematização grita. Seria uma obra bem diferente se o foco também estivesse nessa temática da pedofilia que, afinal, foi central ao lado dos escândalos do banco do Vaticano para o processo de renúncia de Papa Bento 16. A renúncia, na verdade, não é a protagonista, por mais que o título sugira isso; se fosse, esses assuntos seriam mais endereçados, mais dominantes. O filme é sobre o que é o catolicismo hoje.
E o que é o catolicismo e, de maneira mais abrangente, o cristianismo hoje?
Isso me leva ao #wakeupolive, acontecimento recente que não sei se esteve no seu radar…
#wakeupolive
Vou procurar ser o mais respeitoso possível com a fé de cada um, porém sem ignorar a infactível ciência e a minha opinião pessoal. Um casal de norte-americanos da Igreja Bethel em Redding, Califórnia, viu sua filha de 2 anos, Olive Alayne, de repente morta por parada respiratória. A notícia devastadora encontrou uma reação surpreendente: foi estimulado o compartilhamento da hashtag #wakeupolive e pedidos de oração e vigília a espera de um milagre. Isso mesmo: vários cristãos, não só da igreja Bethel, começaram a rezar para pedir que a menina ressuscitasse. Consequentemente, eles não a enterreram: foram 6 dias de oração até um anúncio-declaração de que o milagre não havia acontecido e o enterro acontecer.
Quem confrontava essas pessoas dizendo que infelizmente Olive estava morta e não adiantaria rezar era acusado de falta de fé. O mais estranho: foi criada uma página de crowdfunding com o objetivo de arrecadar US$ 100 mil. Dizia-se que o dinheiro será usado com despesas médicas, mas muitos levantaram as sobrancelhas: um milagre, digamos, um tanto caro…
Existem mil jeitos de se reagir ao luto. O dessa família foi canalizar em orações que tomaram proporções maiores. Para quem vê de fora, principalmente para ateus, agnósticos e não-evangélicos, soa delirante.
No fim do ano passado aconteceu um atentado na produtora Porta dos Fundos no RJ ligado a um grupo que se autodenomina Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira, em retaliação a um especial de fim de ano vinculado na Netflix que mostra em tom de paródia rasgada um Jesus gay.
Liberdade religiosa, sim, mas a nossa liberdade não termina onde a dos outros começa? Claro que ambos os casos são muito diferentes pelas suas consequências mas encontro um denominador comum neles, na minha humilde opinião: a reação desmedida e pretensamente justificada na fé. No caso do #wakeupolive, cada um com seu cada qual: foram os próprios pais que decidiram não enterrar a filha a espera de um milagre. No outro, terrorismo. É bom dar nome aos bois, e é isso: terrorismo. Fundamentalismo cristão.
Houve um tempo em que o cristianismo não era o padrão, o status quo, a maioria. Cristãos foram perseguidos pela sua fé, assim como também já o foram (e sempre existe aquela sensação de perigo à espreita de voltarem a ser) outros grupos religiosos. Religiões de matriz afro sabidamente sofrem muito preconceito no Brasil, existem relatos de atentados a terreiros.
Hoje o cristianismo está intrinsicamente ligado na nossa cultura ocidental, faz parte da base dela. Você pode até não ser cristão, mas os valores cristãos de alguma forma conversam com a sua formação identitária pois dominam a sociedade, estão em sua raiz.
O que me leva de volta à minha visita ao Vaticano…
As escolhas estéticas do Vaticano são as nossas escolhas
Fiquei bem impressionado com Capela Sistina. Como já disse, vi Dois Papas um pouco antes de visitá-la. Fizemos uma visita guiada, então recebi informações frescas sobre Michelangelo, o gênio por trás dos afrescos mais importantes do local (a saber, o Juízo Final ao fundo e as obras do teto). A técnica de afresco, para quem não sabe, requer precisão: se você erra alguma coisa, não dá para pintar por cima. É preciso destruir e recomeçar o trabalho. Outra coisa que a gente precisa lembrar é que o teto foi criado por Michelangelo bem antes do Juízo Final: é o mesmo artista mas ele mudou bastante nesse intervalo, e aprendeu muito também. Dizem que Michelangelo era recluso, taciturno, bem misterioso. A personificação do mito do gênio incompreendido.
A estética de grande parte das obras do Vaticano e do Renascimento é herdada do clássico greco-romano. E na Grécia, você sabe… o homoerótico existia sim. Não adianta querer abafar.
E também não é coincidência que o que é considerado beleza padrão hoje já estava lá. Inclusive é de lá que veio o padrão. O corpo musculoso considerado perfeito, a imagem da saúde plena ligada a esse corpo, a masculinidade tóxica.
Jesus em Juízo Final não é uma figura magra como estamos acostumados a ver em outras obras. Ressurgido no dia do acerto de contas, ele aparece poderoso como um cara que frequenta a academia. Os anjos não possuíam pedaços de pano escondendo seus órgãos genitais no projeto original - esses detalhes pudicos foram acrescentados tempos depois, por outro artista a pedido do então papa em exercício.
Sem falar na ostentação como símbolo do poder. A Galleria delle Carte Geografiche do Padre Ignazio Danti ainda inclui, veja só, dados científicos na fórmula: são mapas lindos mas antes disso preocupados com a precisão na representação da realidade.
Quanto menos informação existe circulando, mais poder tem quem detém a informação.
O Vaticano também pode servir como metáfora para o catolicismo. Enorme, impossível de ser observado em detalhes de uma vez. Cheio de maravilhas, de história, e também de surpresas. Um tanto anacrônico. Lotado, mas de muita gente que prefere passar por ele do que vivenciá-lo.
A Basílica de São Pedro está cheia de mosaicos com pedras bem pequeninas reproduzindo obras incríveis - de Rafael, por exemplo. As originais não podiam ficar ali - a fumaça das velas, por exemplo, estava danificando-as. E uma das Pietás de Michelangelo está ali, mas atrás de um vidro, num aquário. Quase serena e conformada com o filho morto nos braços.
O mito do Messias nas religiões monoteístas varia. Antes e depois de Jesus, outros foram apontados para o mesmo papel. Jesus para os muçulmanos não é o Messias e sim um profeta que antecedeu o maior profeta Maomé, e é chamado Issa.
Na visão islâmica, Issa não foi crucificado e nem morreu - subiu aos céus e deve voltar nos últimos dias do mundo. No cristianismo, ocorreu a crucificação e a ressurreição seguida de acensão - Jesus também está à direita do pai e também volta nos últimos dias. Para os judeus, o Messias ainda não voltou: uma série de eventos precisaria acontecer em conjunto, como a reconstrução do Templo de Jerusalém.
A nova série da Netflix, Messiah, traz uma trama bem interessante.
E se um novo Messias surgisse?
A ação da série começa na Síria em conflito, e um homem é apontado como o responsável por uma tempestade de areia que faz o Estado Islâmico não conseguir atacar a capital. As pessoas começam a acreditar que ele é o Messias, um salvador do povo.
Ele é?
Messiah encontrou reações mistas. Gostei enquanto enredo, me entreteve. É interessante como eles mostram o quanto que as notícias se espalhariam e viralizariam, e como as pessoas se comportariam diante delas. Achei que eles até pegaram leve; na minha opinião o furdúncio ia ser muito maior!
Existem vertentes: a agente da CIA Eva Geller (Michelle Monaghan) acredita que Al-Masih (Medi Dehbi) é um fantoche político, e ela segue essa tese com um fervor quase religioso. A princípio ela não tem uma prova: é um instinto. De origem judia e apegada ao pragmatismo, ela tem vários problemas pessoais, mas nem isso a transforma numa crente. Ela é crente sim: mas do contrário, do ateísmo.
O agente da Mossad Aviram Dahan (Tomer Sisley) acha que ele é um impostor mas hesita quando Al-Masih fala de segredos seus. Como ele poderia saber deles? Isso é um sinal de que Al-Masih é especial ou ele tem informantes muito bons? Jibril Medina (Sayyid El Alami) vira uma espécie de discípulo, crê em uma cega ingenuidade do tipo "Deus proverá". O pastor Felix Iguero (John Ortiz) fica entre achar que Al-Masih é o novo Messias e, mesmo que não seja, se aproveitar disso para formar uma nova igreja. Rebecca Iguero (Stefania LaVie Owen) também é conquistada pelo carisma dele, e sua epilepsia é misturada com um ar místico-profético; por isso ela teria sido escolhida. E assim os personagens seguem, pendendo para cada lado.
Considero que um dos segredos da série é, ao mesmo tempo que ela revela coisas sobre Al-Masih (como por exemplo o fato dele não ter surgido do nada mas ter sido criado pelo tio mágico vigarista, criado como muçulmano e ter um irmão), ela nunca deixa claro se Al-Masih tem poderes milagrosos e um caráter divino. Ou melhor: ela nunca nega essa possibilidade nem confirma. Ele anda sobre a água - é um truque de imagem? Ele "salva” Rebecca - ou simplesmente os dois conseguem sobreviver a um tornado por coincidência? Ele ressuscita um menino baleado - ou isso foi uma farsa armada, já que depois o menino e sua família somem? A cena final (CUIDADO, SPOILER): eles sobrevivem à queda do avião porque simplesmente sobreviveram, ou Al-Masih os salvou? O menino que diz que Aviram estava morto é apresentado, cenas antes, como uma criança que gosta de inventar histórias. E aí? Aviram foi ressuscitado por Al-Masih?
Também não é revelado o real objetivo de Al-Masih: ele quer promover a harmonia e um novo período de paz? Ou a destruição?
Temporada 2 na minha mesa, agora!
Todas essas produções audiovisuais que citei já estão na Netflix.
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