Kylie Jenner em "ué, que diferente": as aparências importam?

Porque afinal, não basta Cleópatra ser honesta. Ela precisa parecer honesta!

Faz uns dias que rolou esse tweet aqui sobre a Kylie Jenner:

Pra começo de conversa: a piada foi ótima. As Kardashian Jenner, goste você delas ou não, fazem apropriação cultural da negritude num nível bizarro. Acho que até ultrapassa o blackface: é como se elas embraquecessem elementos que, nos negros, são apontados como feios. Os lábios grossos. A bunda grande. Mas não tenho lugar de fala e não é essa a questão que eu quero discutir aqui: o fato é que, gente, olha isso…

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Tem uma diferença de dias entre a publicação das imagens.
Não acho que a Kylie é ou está feia no primeiro post, e também não é esse o ponto, e sim a diferença. A partir do momento em que, com intervenção, filtro ou maquiagem (eu nem sei dizer o que é!), você fica completamente diferente em questão de dias, quem exatamente é você? Claro, por dentro todo mundo é o mesmo, independente da quantidade de ácido hialurônico que se injeta. Né?
Ou não?

O quanto que o nosso rosto fala a respeito da nossa identidade? E quem garante que, ao modificá-lo, a gente não está mudando alguma coisa nossa por dentro?
Fala-se de casos de dismorfia despertados por causa do uso das redes sociais há algum tempo. Nesse post do blog da Sallve uma psiquiatra comenta que os casos dobraram por causa da pressão estética na internet.

A série Years and Years da BBC com HBO traz um caso de uma menina que seria transhumana - ela não se identifica com o gênero humano e seu sonho é ser digital. Logo no primeiro episódio já dá para ver que ela só gosta de se mostrar com um filtro de bichinho no rosto, tipo os do Snapchat!

Já falei um pouco sobre Years and Years aqui no blog.

E recentemente assisti a um filme que, CARA, é babado.
A Face do Outro ou O Rosto da Maldade (Tanin no Kao) é inspirado no livro de Kobo Abe de O Rosto de um Outro, que inclusive tem tradução brasileira lançada pela Cosac Naify (arrasa no sebo, amore). O livro é de 1964 e o filme foi lançado em 1966, com direção de Hiroshi Teshigahara. Teshigahara já era babado nessa época: tinha concorrido ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e ganhado um prêmio em Cannes com o longa A Mulher da Areia (1964). Em A Face do Outro ele arrebenta!

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Só tem cena foda em A Face do Outro então fica até difícil comentar sem entregar o ouro. A trama foca em um homem, o sr. Okuyama (Tatsuya Nakadai), que sofreu um acidente no qual seu rosto ficou desfigurado e, por isso, ele precisa andar com uma máscara-bandagem no rosto, para não assustar as pessoas. Até na frente da própria mulher, interpretada por Machiko Kyô, ele fica coberto.
Mas a própria máscara acaba assustando todo mundo do mesmo jeito. Fica claro que Okuyama se ressente disso, virou uma pessoa mais amargurada. E aí um médico psiquiatra (Mikijiro Hira) decide ir contra o que considera sua ética e produz uma máscara que é extremamente parecida com um rosto humano normal, com textura de pele, que ninguém perceberia que é falsa. O detalhe é que o rosto não é de Okuyama, e portanto ele seria irreconhecível.

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Kyô e Nakadai em cena

A Face do Outro faz parte da nova onda do cinema japonês (sim, a nouvelle vague não existiu só na França!)

O médico, que por sinal mantém um consultório muito estiloso, digno de ficção científica, insiste que a nova máscara vai ter efeitos profundos de caráter psicológico no protagonista. Como se ela aos poucos acabasse alterando a psiquê, um elemento externo que mexe com o interior. E é o rosto.

Paralelamente, uma história aparentemente sem ligação é contada: uma menina (Miki Irie) tem parte do seu rosto, que ela mantém coberta pelo cabelo, deformada. Com isso, sofre bullying. Ao mesmo tempo, um homem tenta violentá-la. Ela vive com o irmão (Kakuya Saeki), o único que parece aceitá-la assim. Pois bem: ela acaba seduzindo-o.

Miki Irie com os cabelos cobrindo o rosto

Miki Irie com os cabelos cobrindo o rosto

Você alteraria algo do seu rosto?
Seria para você ou para os outros?
Tem certeza?

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A pulsão de amor e desejo é o que move a história da A Face do Outro; os personagens agem sem medir consequências. Uma das coisas que eu acho mais interessante é o personagem da menina do ioiô (Etsuko Ishihara), que teria deficiência intelectual mas reconhece Okuyama mesmo com “a face do outro". A deficiência na verdade lhe deu uma capacidade cognitiva maior a respeito da essência de cada um? O médico diz que é por causa do cheiro - da mesma forma que um cachorro reconheceria pelo cheiro, ela talvez seria capaz de fazê-lo.
Mas o médico, depois percebemos, tem uns palpites bem mequetrefes…

Kylie Jenner fez do seu rosto um negócio. Ela é uma empresária bilionária do mercado de maquiagem e o seu outdoor é a selfie do Instagram. No fundo não tem problema ela mostrar que a imagem do Insta não corresponde à realidade sem pintura: é exatamente isso que ela está vendendo, produtos que vão te fazer parecer (digo mais, ser) outra pessoa. A pessoa que você quiser, no padrão de beleza que for.

Enquanto isso, a religião islâmica pede que as mulheres usem burca, cobrindo o rosto.
O rosto é algo íntimo, que não deve ser revelado a estranhos.
Atualmente, na pandemia, mostramos o rosto em selfies e transmissões online, mas quando precisamos estar na rua nos cobrimos com máscaras.

A gente já sabe que roupa é expressão. Mesmo que inconsciente: você pode achar que usando "qualquer coisa” não está exprimindo algo, mas está. O rosto - e a alteração dele - também não diz algo sempre?

Quem gostou desse post acho que também vai gostar do que falei sobre o #bratzchallenge. Serve de complemento.

A dica de hoje é...

If you don't mean it, don't say it.

Não, na verdade a dica não é a música.
É que tenho ficado um pouco irritado com gente que fala da boca pra fora e decidi desabafar.

Não é novidade que falta responsabilidade emocional em todo mundo. O Pequeno Príncipe foi lançado em 1943 e desde então as pessoas continuam repetindo que "tu és eternamente responsável por aquilo que cativas”, até em tom de chacota. Colocar em prática? Poucos colocam.

(Sinceramente recomendo a leitura de O Pequeno Príncipe para quem nunca leu, principalmente para quem tem preconceito. Acho lindo.)

(Sinceramente recomendo a leitura de O Pequeno Príncipe para quem nunca leu, principalmente para quem tem preconceito. Acho lindo.)

É que agora virou prática tudo ser tóxico. Fulano é tóxico, esse ambiente é tóxico, esse apresentador é tóxico. “Ai, hoje o dia está muito tóxico, não vou sair". Epa. Preferia quando a gente assumia a responsabilidade de achar alguém otário, de também analisar a nossa responsabilidade nas relações, de colocar motivos concretos para as coisas. Concordo que existem elementos que parecem cheios de veneno, mas essa palavrinha, tóxico, carrega em si o significado de que aquilo é um veneno para todo mundo, de que nós somos pobres vítimas da toxicidade. Quer ignorar o elemento? Ignore, mas assuma que quer fechar os olhos então, assuma a sua alienação. E reflita sobre a parte que te cabe nesse cenário.

Muita gente tem crises de ansiedade hoje e parece que o mundo todo está mergulhado no tóxico, mas acredito que também exista uma criação cada vez maior de expectativas não-cumpridas que ficam no ar. Estamos ficando treinados em desconfiar que tudo que se fala é da boca para fora, mas ao mesmo tempo pinta um raio de esperança e você pensa “Ah, ele não teria porque dizer isso. Ele poderia ter simplesmente jogado a real. Ou ele já teria me avisado."

Spoiler: não, ele, ou ela, ou eles, ou seja qual for a entidade aí, falou porque… sei lá, porque ela quis. Ou porque ela não quis desdizer depois.

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As pessoas estão cada vez mais 100% nem aí. Ao mesmo tempo não querem que você crie expectativas. E às vezes até consideram que você "levou muito a sério". Ou brincam: “Ai, foi brincadeira". Bom, se eu achei que não foi brincadeira, é porque você não sinalizou direito. Será que a culpa está no receptor ou no emissor da mensagem? Desentendimentos acontecem - mas não deveriam acontecer com frequência. Uma das bases do viver em sociedade é esse entendimento, feitos em contratos sociais ditos e não assinados.

Sinto que está ficando muito complexo então vou simplificar:
. Não quer me encontrar na semana que vem? Então não diga que quer.
. Não quer me responder a respeito da vaga de emprego? Então não diga que vai me responder.
. Não está com saudade? Então não diga que está.
. Não quer saber da minha vida? Então pelamor não me diga que queria saber de mim para depois ficar duas horas falando de você.
. Não me acha bacana? Então não diga que me acha bacana. E pode substituir por qualquer outro adjetivo: não estou bonito? Não diga que estou. Não sou simpático? Não diga que sou.
. Não quer me emprestar algo? Então não diga que vai me emprestar, juro que é melhor.
. Não me quer em algum lugar? Então não me convide. Nem de maneira vaga, tipo "passa lá". Está tudo bem. É melhor não me convidar, é mais educado não me convidar, por mais que você acredite no contrário. E assuma. Deixe às claras.
. Não gosta de algo? Não diga que gosta. Pode pegar bem momentaneamente no seu grupinho de amigos, nas suas redes sociais. Mas vai pegar mal quando as pessoas perceberem que na verdade você não gosta.
. Não tem certeza se gosta de algo? Então fique quieto. Ou diga que não tem certeza.

Sou a favor de mudar de ideia, claro. É só deixar tudo claro: você diz que mudou de ideia. A menos que não tenha mudado.

Isso tudo soa como cagação de regra, mas sinceramente todo mundo caga umas regras de vez em quando. Foda-se. Só queria deixar claro que o poder da palavra, o poder do discurso, não pode se esvaziar assim. Trabalho com comunicação e levo as palavras muito a sério; acho que todo mundo devia levá-las também. Hoje em dia nem tem como dizer que a pessoa te pegou desprevenido já que a maioria das interações é online: dá para pensar antes de dizer/escrever. Antes de apertar o botão de enviar, o botão de publicar.

Portanto fale o que pensa, e pense bem. E cumpra-se. Gente sem palavra é uma coisa muito cafona.

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#ProntoFalei

Um sonho terminar esse texto com essa imagem!! (Não, não li)

E não atrasem! Seus ridículos. Atrasar é uó, ninguém é obrigado a esperar a madame!