Sabe quem está voltando? Ele mesmo, o nunca aposentado Hayao Miyazaki

Tal qual um brasileiro, Hayao Miyazaki, o diretor por trás de pérolas como Viagem de Chihiro e Meu Amigo Totoro, já tinha dito que ia se aposentar depois de Vidas ao Vento (2013). Mas ele não sossega: uma das maiores referências do anime, Miyazaki acabou de fazer 79 anos no último dia 5/01 e prepara Kimi-tachi wa Dō Ikiru ka, uma história sobre um rapaz de 15 anos que vai morar com o tio pois o pai morreu. O rapaz tem que enfrentar bullying e pobreza. Preparem os lenços!

kimatachi.jpg

Essa é uma das capas do livro que inspira o filme

Um clássico da literatura infanto-juvenil japonesa, Kimi-tachi wa Dō Ikiru ka foi lançado em 1937 por Yoshino Genzaburo e na verdade "começado” por Yuzo Yamamoto - o segundo começou a publicá-lo de forma serial e não conseguiu completar o trabalho por causa de uma doença

O que, você nunca chorou assistindo um anime? Bom, começando pelo próprio Viagem de Chihiro - me poupe. Caso você queira passar pela experiência, vou enumerar alguns filmes, focando só nas produções do Studio Ghibli de Miyazaki (e não só nas dirigidas por ele), para você passar pela experiência. Vamos lá:

Isao Takahata

Só esse cara fez dois dos filmes mais emocionantes que já vi - e os dois são animes. O primeiro é uma das coisas mais tristes que existem, Túmulo dos Vagalumes (1988).

tumulo-dos-vagalumes.jpg

Ele acompanha a história de um menino e sua irmãzinha no Japão durante a 2ª Guerra Mundial.
Lembro-me de maneira um tanto vaga que eu simplesmente não consegui assistir inteiro porque era insuportavelmente triste, e depois acabei vendo o resto.

O outro talvez não seja emocionante para todo mundo mas quando assisti me tocou de uma forma babadeira. Memórias de Ontem (1991) traz Taeko, uma mulher de 27 anos que se vê indo para o interior e está pensando na vida - só que para entender qual caminho tomar, ela vai revivendo momentos da sua infância.
Sério. Você precisa ver isso. Melhor que muito drama de Hollywood de hoje. Já falei sobre ele antes aqui no blog.

omide-poro-poro.jpg

Ondas do Oceano (1993)

Até onde eu sei, Ondas do Oceano foi produzido na verdade para a TV. Mas o resultado do diretor Tomomi Mochizuki ficou bom o bastante para o povo tratar como uma das obras grandes do Studio Ghibli. Na minha opinião, é um intermediário: uma romcom interessante, mas esquecível. Dá para dar uma minichoradinha, e quem gostou do megahit Your Name (2016) talvez curta.

ocean-waves.jpg

Sussuros no Coração (1995)

É um "filme de menina", assim como o anterior. Mas ao mesmo tempo essa romcom tem gato mágico (!!), fãs de livros e me fez nunca mais esquecer Take me Home, Country Roads - isso mesmo, a música country de John Denver! "Que que tem a ver?”, você me pergunta. Bem, assista ao filme!

<3 <3 <3
A menina Shizuku adora livros e de repente repara que tem um rapaz que leu todos os livros que ela pega na biblioteca antes dela.
Ah, e aí tem um gatinho maravilhoso gordinho nesse meio tempo.

mimi-wo-sumaseba.jpg

Esse longa também guarda uma história triste: Yoshifumi Kondo, o diretor, morreu por causa de um aneurisma em 1998 aos 47 anos. Esse acabou sendo o único filme que ele deixou.

Em 2002, apareceu O Reino dos Gatos, uma espécie de spin-off de Sussuros no Coração porque o gato Barão e o Muta (que é o gordinho) reaparecem. Não acho tão bom mas uma vez que amei o primeiro, serve para me acalmar ao saber que Kondo não vai mais nos dar filmes :( O Reino dos Gatos é dirigido por Hiroyuki Morita, e é mais fantasioso e infantil.

Da Colina Kokuriko (2011)

De pai para filho: esse é um dos filmes que o filho de Miyazaki, Goro Miyazaki, dirigiu. Dizem que ele nunca quis seguir a carreira do pai para evitar comparações mas foi inevitável: depois de cuidar do projeto de construção do museu do Studio Ghibli em Mitaka, bairro de Tóquio, ele acabou se rendendo.

from-up-on-poppy-hill.jpg

Esse é o segundo filme de Goro e se passa em Yokohama, que fica pertinho de Tóquio, às vésperas das Olimpíadas de 1964. Yokohama é cidade portuária e a protagonista, Umi, que perdeu o pai na Guerra da Coreia, se vê às voltas com um novo rapaz, Shun, o seu próprio passado e o destino do Quartier Latin, o antigo prédio de clubes da escola. Não dá para a gente reescrever o passado, mas é possível descobrir mais sobre ele?

Muito bonito. Dei uma chorada leve.

Vidas ao Vento (2013)

Um caso à parte: o último filme lançado com direção de Hayao Miyazaki é baseado numa história real. A de Jiro Horikoshi, o homem que desenhou aviões que o Japão usou na 2ª Guerra.

vidas-ao-vento.jpg

Mesmo com esse subtexto bélico, Miyazaki, que é conhecido por ser pacifista e ambientalista, explora mais o lado do sonho de Horikoshi, com um resultado de complexa beleza. Não ganhou o Oscar de Melhor Animação, foi só indicado - e se não fosse uma animação, talvez seria mais conhecido e celebrado.

E tenho um carinho especial por ele, pois é o filme que me apresentou Yumi Arai e uma das minhas músicas preferidas do mundo, Hikouki Gumo. Por causa dele, essa música lançada em 1973 ganhou uma nova vida e virou um sucesso no Japão.

E que mais?

Fora do Studio Ghibli, tem o Your Name que eu já citei, né? Não me cancelem por favor mas acho uma bomba radioativa: cheio de clichês, com um ritmo esquisito (parece vários episódios de uma série unidos, com um monte de reviravolta que não dá nem para curtir por causa do tempo curto entre elas), é tipo Se Eu Fosse Você versão adolescente. Mas Your Name é recordista de bilheteria, um estouro - portanto minha opinião não é exatamente a mais popular...

kimi-no-na-wa.jpg

Dá uma olhada na Netflix se você não conhece e se interessou porque tem lá. E para quem gosta de Your Name, a boa notícia é que Makoto Shinkai, o diretor e roteirista, está para lançar um novo anime. Tenki No Ko já estreou no Japão e foi um hit (ah, jura?) e chega nos EUA ainda esse mês com o nome Weathering With You. O protagonista, que fugiu de casa, encontra uma menina que parece controlar o tempo tipo Tempestade dos X-Men.

tenki-no-ko.jpg

Os monstros de Joon-ho Bong antes de Parasita

Parasita (2019) é um dos grandes filmes do ano, acho que a maioria das pessoas já concordou com isso. Certo? Ele está entre os pré-finalistas do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (ao contrário do nosso A Vida Invisível de Karin Aïnouz) e ainda recebeu uma pré-indicação surpresa por Melhor Canção Original com 소주 한 잔 (tradução: um copo de soju).

Gostou do meu coreano, né? (Copiei de um lugar, nem sei se está certo) Play para ouvir!

Soju, para quem não sabe, é o mé coreano. A birita. A caninha. Destilado, ele é feito ou de arroz, ou de trigo, ou de outra coisa e também é bem comum encontrar o de batata doce. Non mi piace, mas tem aos montes em vendinhas no Bom Retiro ou na Liberdade, para quem quiser experimentar.

Acho a música bonitinha, mas duvido que ganhe de coisas como Spirit de Beyoncé (xarope mas tem a cara do Oscar) e (I'm Gonna) Love me Again do Elton John. O Oscar é muito cafona, aceita. Mas que ia ser babado uma música coreana ganhar, olha, ia mesmo. Se eu fosse do time de produtores-criadores da cerimônia, tacava logo um BTS cantando a música para a audiência ser a maior da história! kkkkkkk

Mas estou aqui para falar dos monstros.
Joon-ho Bong fez bastante coisa antes de chegar aqui. Inclusive um filme hollywoodiano, Expresso do Amanhã (2013). E tem dois no catálogo da Netflix que vale a pena dar uma olhada, se é que você já não olhou. Eles possuem coisas em comum: contam com bichos grandões criados pela estupidez humana: um pela arrogância e irresponsabilidade, outro pela ganância inescrupulosa. Ambos também tem muita ação, daquele tipo que te deixa na pontinha da cadeira e o olho arregalado de ansiedade, mas subvertem a lógica dos filmes de ação "de machão", com homens musculosos e rajadas de bala. É interessante perceber que no universo de Bong essa masculinidade tóxica não tem vez - ela parece não fazer sentido na sociedade sul-coreana, pelo menos no que a gente percebe como ocidentais leigos. Parece-me que a valorização maior é da sensibilidade e astúcia. Mas posso estar falando a maior bobagem, hein! É apenas uma percepção de quem acompanha mais ou menos os fenômenos culturais vindos de lá.

Vamos começar pelo filme mais antigo desses dois: O Hospedeiro, de 2006.

o-hospedeiro.jpg

Para começar, não dá para deixar de notar paralelos entre a história de O Hospedeiro e o clássico nipônico Godzilla. O monstrão que deu origem aos filmes de kaiju tem uma história de origem envolvida em ecologia e no uso indiscriminado de energia nuclear. Ele é o incompreendido, a reação da natureza contra a ação do homem. Um ser mutante, radioativo, que virou parte de uma mitologia contemporânea pop.

O hospedeiro, que nunca ganha um nome oficial na trama, também é fruto de uma mutação: um funcionário coreano do que parece ser um laboratório médico militar é obrigado por um superior ocidental bem displicente com regras a despejar produtos químicos perigosos pelo ralo. Esses produtos, via esgoto, vão direto para o rio Han (o maior rio da Coreia do Sul). Depois, um homem vê algo se mexendo no rio Han antes de se jogar nele e cometer suicídio. Esse homem realmente morreu? Ele virou o monstro, em uma mutação com os peixes do rio que também estão ficando esquisitos, com mais de um rabo? Ou ele foi devorado pelo monstro já formado? O diretor se inspirou em uma notícia real sobre um peixe pescado no próprio rio Han que tinha a espinha em forma de S.

Corta para 6 anos depois: um bichão horroroso que lembra os monstros da mitologia do Stranger Things (mas veio antes) surge no rio Han e faz a maior zona, matando algumas pessoas, ferindo outras. Ele tem o costume de levar corpos para uma espécie de covil (daí vem o nome do longa; ele é o hospedeiro no sentido de ser o anfitrião desses corpos). E ele acaba levando o corpo da menina Hyun-seo Park (Ko Asung), filha de Gang-Doo Park (Kang-ho Song, que você conhece de Parasita como o pai da família pobre).

Ela é dada como morta mas sobreviveu e consegue contatar a família lá do covil por celular. Agora, os Park querem salvar a menina - mas o problema é que o governo quer conter o hospedeiro de qualquer jeito, usando até arma biológica, e ele acredita que todos que entraram em contato com o bichão podem ter contraído um vírus.

Gang-Doo e Hyun-Seo

Gang-Doo e Hyun-Seo

A saga de Gang-Doo, seu pai e seus irmãos para conseguir salvar a menina passa por diversos subtextos sem ficar cabeça, entretendo. Existe o descaso das autoridades com as vítimas e os sobreviventes, a corrupção, o amigo entregando outro amigo para a justiça, o pobre que precisa se virar para sobreviver. Como contraponto temos o amor incondicional do pai e da família pela menina em perigo e um personagem que aparece pouco mas que diz tudo: o mendigo que ajuda Nam-il Park (Hae-il Park) sem esperar recompensa. Ele chega a brigar com Nam-il quando esse sugere dar uma recompensa em dinheiro.

o-hospedeiro-3.jpeg

E aí tem a adorável parábola Okja (2017), que eu não chego a considerar um filme hollywoodiano mas é um híbrido entre Coreia do Sul com EUA que conta com superestrelas (Tilda Swinton, Jake Gyllenhaal) e atores coreanos (caso específico da menina protagonista, Ahn Seo-hyun).

Você provavelmente já ouviu alguém dizer que virou vegetariano ou vegano por causa de Okja. Faz sentido mesmo. Mas também é engraçado porque o filme, ao mesmo tempo que apresenta a sede inconsequente por lucro da indústria alimentícia, também mostra a militância vegan como ingênua e um tanto desorganizada.

Okja e Mija (Seo-hyun)

Okja e Mija (Seo-hyun)

Resumidamente: a fazenda onde Mija vive é uma das escolhidas por uma corporação para criar Okja, um dos superporcos que ela fez nascer de uma porcona mãe. Para a empresa, ela é a fonte de produtos alimentícios deliciosos. Para Mija, Okja é sua melhor amiga. Chega a hora da Mirando Corporation pegar Okja, que já está bem enorme, para um concurso de o maior superporco. Ela deve ganhar. Mas Mija não se conforma e parte em uma aventura para salvá-la, mesmo que seu avô diga que Okja foi criada com um destino pré-estabelecido: morrer e virar comida. Para ajudá-la, surgem militantes de um grupo que luta pelos direitos dos animais.

No palco com o inimigo: Lucy Mirando (Swinton) e Mija. Esses looks à moda coreana são nada menos que… Chanel. Tá, meu bem?

No palco com o inimigo: Lucy Mirando (Swinton) e Mija. Esses looks à moda coreana são nada menos que… Chanel. Tá, meu bem?

Com um enredo envolvente mas bem simples, o filme se move no amor de uma criança pela sua amiga. E a gente fica convencido desse amor porque Okja é de fato muito carismática, com olhos expressivos, fofa tal qual um Totoro realista. Aí está o segredo e também a sina da produção: então só dá para deixar de comer carne pela empatia? Não é o princípio que faz Mija entrar em ação.

Entendi que todo mundo gostou da interpretação de Gyllenhaal no filme. Achei meio exagerada demais, histriônica. Até funciona, mas sei lá, né?

A melhor cena do filme: a perseguição no centro de compras! Kkkkkkkkkk

A melhor cena do filme: a perseguição no centro de compras! Kkkkkkkkkk

Uma das coisas mais instigantes para mim é que, depois de O Hospedeiro e Okja, Bong tenha feito um filme chamado Parasita no qual… não existe um monstro. É como se agora ele reconhecesse que os maiores monstros somos nós mesmos. Sem metáforas, mais realista. Você pode ler mais sobre o que achei de Parasita nesse post aqui.

Pintaram rumores sobre uma sequência de O Hospedeiro mas faz tempo. Nada aconteceu desde então. Acho difícil que aconteça - mesmo sem Joon-ho Bong. Mas eu queria ver? Olha, até queria! kkkkk

Se você gostou desse post, talvez também goste de:
. Um salve para o cara que criou a trilha clássica de Godzilla
. Um coração em festa: Changeman no catálogo da Amazon Prime!