Rober Dognani na Casa de Criadores: uma questão de fé
Tem desfiles que não servem necessariamente para propor roupas e jeitos de usá-las. É outra coisa, e é importante, e azar de quem veio só para ver tendencinha.
O desfile de Rober Dognani na Casa de Criadores foi um desses que desafiam essas regras.
O assunto religião e fé sempre foi muito atraente para mim. Fui criado no catolicismo mas nunca realmente me empolguei com o ritual da missa nem com alguns dogmas, mas outras coisas eram extremamente potentes: o amor incondicional de Jesus (uma das minhas músicas preferidas da vida, é sério, é aquela "amar como Jesus amou / sonhar como Jesus sonhou…”); a questão da atenção para as minorias (o que me incomoda é a necessidade de apontá-las como pecadoras e convertê-las); a figura de São Francisco que renuncia sua vida de luxo para uma vida de doação (vi uma roupinha original de São Francisco na Sagrada Família em Barcelona e desabei a chorar); por aí vai.
Um dos meus sonhos é ir para Israel e para Istambul, e muito disso vem de querer entender melhor a cultura judaica e islâmica de perto porque ainda acho que tenho uma noção muito caricatural por falta de conhecimento.
E finalmente, para quem não sabe, antes de casar no civil eu casei com meu marido perante os olhos de Buda em cerimônia bem íntima no Japão. Não sou budista, na verdade acho que sou meio sincrético, meio agnóstico, meio sei lá. As religiões que mais me sinto simpatizante são as de origem asiática e as de matriz africana. Mas não pratico nenhuma.
E perante todo esse cenário, uma das coisas que mais me chocou nesse assunto foi o chute que o pastor Sérgio von Helder deu na imagem da Nossa Senhora Aparecida em cadeia nacional no mês de outubro do ano de 1995. Ali, materializava-se a imagem de uma religião conservadora, agressiva e intolerante que hoje ganhou tanto poder no país que, adivinha, está no poder.
É importante salientar que ao pregar um mundo sem preconceito, é bom não repetirmos frases feitas sem pensar. Quando falamos em evangélicos, costumamos abarcar tudo num mesmo pacote. Só que não é bem assim: existe todo tipo de crente (assim como existe todo tipo de católico); e para deixar a situação ainda mais complexa existem várias igrejas diferentes, com graus muito diversos de tolerância, com cabeça mais ou menos aberta, de perfis mais ou menos agregadores. Então não gosto quando as pessoas ouvem a palavra "evangélico” e automaticamente torcem o nariz. Mesmo porque conheço pessoas incríveis que são evangélicas.
Porém, sim, quando o pastor chutou a santa, eu fiquei TITICA com os evangélicos.
O desfile de Rober é uma criação mais artística e performática do que fashion em sua concepção - apesar de também mostrar roupa sim, e como teve colaboração de Felipe Fanaia, seu parceiro na loja Das Haus, funciona um pouco como um desfile da Das Haus, uma amostra do que você pode encontrar nas araras (e na alma das marcas). É, ao mesmo tempo, um desfile muito pessoal pois Rober é devoto, vai a Aparecida todo ano e ele passa por um problema delicado de família - a apresentação é uma demonstração de fé que parte do caso dele e vai para o universal.
E por fim ainda tinha a Nossa Senhora Aparecida em si para entrar na passarela.
Eu pensei: "Será que não vai ser literal demais? Será que não vai ser clichê demais?"
Tinha visto uma foto da prova de roupa no backstage e sei lá porque não tinha reconhecido.
Porque a Nossa Senhora era a Anna Luiah.
A primeira vez que falei com a Anna ao vivo foi na redação do site da Lilian Pacce. A gente fez um editorial juntos no qual eu acreditei demais e gostei demais do resultado. Ela arrasou - uma simpatia em pessoa, para cima, uma energia ímpar, uma fotogenia de babar.
A última vez que eu falei pessoalmente com a Anna não foi um dia tão feliz.
Foi no dia 27/04.
Como eu já falei um pouco anteriormente no meu texto sobre o desfile da Flavia Aranha, o fim do SPFW N47 foi muito difícil e simbólico - o dia 27 foi o dia da morte do Tales Cotta. Quando fui encontrar a Lilian no backstage da Cavalera para entregar a bolsa dela e ir embora, encontrei com a Anna no corredor. A gente se cumprimentou e ela percebeu que algo estava errado (claro, ninguém ali estava OK). Chorei e ela me consolou, foi muito importante o abraço dela naquele momento.
Tenho muito carinho pela Anna. Então para mim teve um gosto a mais, maravilhoso, vê-la como Nossa Senhora. Porque acima de tudo, e pelo pouco que a conheço, sei que ela é mais do que merecedora desse papel de destaque, e ela de certa forma funcionou como conforto para mim naquele momento difícil de entender.
A verdade é que ainda tem sido difícil assistir a desfiles e encontrar propósito neles depois disso tudo que aconteceu, e também depois de sair do site da Lilian e não sentir uma obrigação profissional de comparecer.
Um beijo carinhoso para o Rober - eu estava precisando de um desfile desses.
Deus não é acima de todos. Deus, ou esse complexo conceito, é para todos. E pronto.