Pulgasari, o Godzilla norte-coreano
Você conhece a história do Shin Sang-ok e da Choi Eun-hee? É uma loucura. Kim Jong-il, quando ainda era o filho do ditador norte-coreano e não o ditador em exercício, tinha um sonho: fazer filmes. Ele curtia muito esse mundo do cinema e queria uma produção cinematográfica de qualidade na Coreia do Norte, mas sabia que, para isso, ia precisar de "ajuda” de fora. Então decidiu sequestrar Sang-ok e Eun-hee, um casal de diretor e atriz sul-coreanos que já fazia muito sucesso na Coreia do Sul!
A história toda é contada no documentário Os Amantes e o Déspota, lançado em 2016.
Só que os dois já estavam separados quando tudo aconteceu – Sang-ok era mulherengo, teve uma amante na cara dura e todos sabiam. Eun-hee foi convencida primeiro a ir pra Hong Kong, em janeiro de 1978. De lá, a sedaram e levaram pra Pyongyang. Sang-ok, que seguia amigo dela apesar de divorciado (e ela era a mãe dos filhos deles, eles tinham um casal de crianças adotadas), diz que ficou preocupado com o desaparecimento e foi atrás dela em Hong Kong em julho. E também sumiu.
Sang-ok morreu em 2006. Eun-hee em 2018.
Durante o período em que ficou na Coreia do Norte, entre 1978 e 1986, Sang-ok dirigiu 7 filmes no país e funcionou como uma espécie de diretor de produção de mais 13. Tem quem ache que na verdade ele foi por livre e espontânea vontade porque achava que teria recursos à vontade para fazer os filmes que queria, e as coisas não iam muito bem em 1978 para ele na Coreia do Sul. De qualquer forma, ele e a ex-mulher "desertaram" em 1989, durante um festival de cinema em Viena, pedindo asilo na embaixada estadunidense.
Já existiam filmes norte-coreanos. Mas a qualidade era muito ruim – eram baseados em propaganda pró-regime, perdendo o poder da narrativa cinematográfica, sempre focados em "sacrifício para o Grande Líder" e coisas assim. Ou seja: eram medíocres. Então Kim Jong-il decidiu chacoalhar as coisas a partir de 1968, se metendo a produzir. Kkot Panum Chyonyo, por exemplo, impressionou tanto que ganhou prêmio em festival da Tchecoslováquia.
Propaganda por propaganda, o filme de Sang-ok de 1963, Ssal, falava das políticas do então presidente da Coreia do Sul, Park Chung-Hee, sobre modernização da agricultura. Mas depois disso a relação entre os dois azedou, a ponto de Sang-ok, em 1978, estar com a sua produtora cinematográfica proibida de funcionar a mando do governo. Portanto, Sang-ok não estava conseguindo filmar naquela época. Vem daí a desconfiança a respeito da veracidade de seu sequestro: tem quem ache que ele foi por livre e espontânea vontade.
Três coisas contam a favor de Sang-ok e sua história:
. Ele ficou sem filmar entre 1978 e 1983, tempo em que ele explicava que foi mantido em campo de concentração passando por lavagem cerebral para se tornar um aliado do regime.
. Existem fitas que supostamente foram gravadas em reuniões e ligações entre Sang-ok e Kim Jong-il. Elas serviram de prova quando Sang-ok e Eun-hee finalmente pediram asilo nos EUA. Tem quem ache que são forjadas. E o que Jong-il diz na gravação para provar que havia acontecido um sequestro é, no fundo, bem sutil: algo como “pedi para eles trouxessem vocês".
. Os filhos. Eles deixaram dois filhos para trás.
Mas existem pontos contra a versão de Sang-ok, fora o fato de que ele não estava fazendo filmes na Coreia do Sul e poderia fazer filmes na Coreia do Norte:
. Uma coletiva de imprensa no Karlovy Vary, festival de cinema da Tchecoslováquia (que existe até hoje, agora na República Tcheca), trouxe Sang-ok declarando que foi voluntariamente para a Coreia do Norte, ao lado de Eun-hee, e que qualquer jornal sul-coreano que falasse o contrário estaria mentindo.
. O diretor tinha muita liberdade de expressão. O título do segundo filme que dirigiu por lá, por exemplo, Sarang, sarang naesarang (1985), pode ser traduzido como Amor, Amor, Meu Amor. O termo é tabu em obras assim na Coreia do Norte. Amor? Só pelo Grande Líder, oras! Mas deixaram Sang-ok fazer essa provocação em prol da arte. Não parece um artista sendo forçado a fazer coisas por um ditador. O filme também traz o primeiro beijo do cinema norte-coreano (eita, que povo retraído).
. Eles filmaram uma parte das cenas de Sincheongjeon (1985) em Munique. Por que não desertaram nesse momento?
O que eu acho? Sei lá. Acho meio esquisito duvidar dessa história tão doida. Será que alguém realmente inventaria tudo isso?
No exílio nos EUA, Sang-ok dirigiu um filme. Era 3 Ninjas em Apuros (1995), da cinessérie 3 Ninjas. Ele o assinou sob o pseudônimo Simon Sheen.
Sang-ok voltou definitivamente com Eun-hee para Coreia do Sul nos anos 1990, apesar de seu medo de ser descreditado. Eles seguiram novamente juntos depois de se reencontrarem na Coreia do Norte até Sang-ok morrer.
Finalmente: Pulgasari (1985)!
Inspirado em kaiju e principalmente no Godzilla, o maior kaiju de todos, surgiu essa história de fazendeiros que se revoltam contra a decisão do rei de uma Coreia medieval de tomar-lhes as ferramentas de ferro usadas para o plantio e cozinha com o objetivo de fazer mais armas. Um ferreiro se recusa a fazer espadas com esses instrumentos e acaba devolvendo-os para os aldeões. O representante do rei, em represália, o prende e não lhe dá de comer até ele contar onde foi parar todo o ferro desaparecido. A filha dele consegue jogar arroz pela janela da prisão, mas no lugar de comer ele usa o arroz para moldar um monstrinho e implora aos deuses para que eles o ajudem a salvar a aldeia. Ele morre de fome.
O monstrinho vai parar na casa da filha do ferreiro. Ela fura o dedo costurando e deixa pingar sangue no monstrinho. Isso faz com que ele crie vida, comece a comer ferro e, quanto mais come, ele vai crescendo até se transformar no kaiju Pulgasari.
A história parece pueril e é, mas se a gente pensar nos efeitos especiais disponíveis naquela época e no próprio Godzilla, é bem feitinha. Eu, como gosto de Jaspion, achei o filme meio arrastado mas divertido e não me importei com os efeitos – acho até que dá um charme.
Pulgasari também é inspirado em uma lenda que já existia na Coreia do Norte com o mesmo nome ou a variante Bulgasari. Já era um bicho que comia metal. A Toho, produtora japonesa responsável pelo Godzilla, ajudou nos efeitos especiais – quem usou a fantasia de borracha foi Satsuma Kenpachiro, que já tinha vestido a fantasia de Godzilla!
O filme virou cult, chegou a passar nos cinemas do Japão anos depois e apareceu em VHS nos EUA.
Tem quem enxergue uma metáfora negativa para Jong-il escondida em Pulgasari: o monstro representaria esse regime que ajudou mas depois se transformou em carrasco, exigindo mais e mais ferro do povo. Ao mesmo tempo, a história fala sobre o poder do coletivo oprimido contra o seu opressor.
Pulgasari foi o último filme dirigido por Sang-ok na Coreia do Norte.
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