Os monstros de Joon-ho Bong antes de Parasita

Parasita (2019) é um dos grandes filmes do ano, acho que a maioria das pessoas já concordou com isso. Certo? Ele está entre os pré-finalistas do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (ao contrário do nosso A Vida Invisível de Karin Aïnouz) e ainda recebeu uma pré-indicação surpresa por Melhor Canção Original com 소주 한 잔 (tradução: um copo de soju).

Gostou do meu coreano, né? (Copiei de um lugar, nem sei se está certo) Play para ouvir!

Soju, para quem não sabe, é o mé coreano. A birita. A caninha. Destilado, ele é feito ou de arroz, ou de trigo, ou de outra coisa e também é bem comum encontrar o de batata doce. Non mi piace, mas tem aos montes em vendinhas no Bom Retiro ou na Liberdade, para quem quiser experimentar.

Acho a música bonitinha, mas duvido que ganhe de coisas como Spirit de Beyoncé (xarope mas tem a cara do Oscar) e (I'm Gonna) Love me Again do Elton John. O Oscar é muito cafona, aceita. Mas que ia ser babado uma música coreana ganhar, olha, ia mesmo. Se eu fosse do time de produtores-criadores da cerimônia, tacava logo um BTS cantando a música para a audiência ser a maior da história! kkkkkkk

Mas estou aqui para falar dos monstros.
Joon-ho Bong fez bastante coisa antes de chegar aqui. Inclusive um filme hollywoodiano, Expresso do Amanhã (2013). E tem dois no catálogo da Netflix que vale a pena dar uma olhada, se é que você já não olhou. Eles possuem coisas em comum: contam com bichos grandões criados pela estupidez humana: um pela arrogância e irresponsabilidade, outro pela ganância inescrupulosa. Ambos também tem muita ação, daquele tipo que te deixa na pontinha da cadeira e o olho arregalado de ansiedade, mas subvertem a lógica dos filmes de ação "de machão", com homens musculosos e rajadas de bala. É interessante perceber que no universo de Bong essa masculinidade tóxica não tem vez - ela parece não fazer sentido na sociedade sul-coreana, pelo menos no que a gente percebe como ocidentais leigos. Parece-me que a valorização maior é da sensibilidade e astúcia. Mas posso estar falando a maior bobagem, hein! É apenas uma percepção de quem acompanha mais ou menos os fenômenos culturais vindos de lá.

Vamos começar pelo filme mais antigo desses dois: O Hospedeiro, de 2006.

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Para começar, não dá para deixar de notar paralelos entre a história de O Hospedeiro e o clássico nipônico Godzilla. O monstrão que deu origem aos filmes de kaiju tem uma história de origem envolvida em ecologia e no uso indiscriminado de energia nuclear. Ele é o incompreendido, a reação da natureza contra a ação do homem. Um ser mutante, radioativo, que virou parte de uma mitologia contemporânea pop.

O hospedeiro, que nunca ganha um nome oficial na trama, também é fruto de uma mutação: um funcionário coreano do que parece ser um laboratório médico militar é obrigado por um superior ocidental bem displicente com regras a despejar produtos químicos perigosos pelo ralo. Esses produtos, via esgoto, vão direto para o rio Han (o maior rio da Coreia do Sul). Depois, um homem vê algo se mexendo no rio Han antes de se jogar nele e cometer suicídio. Esse homem realmente morreu? Ele virou o monstro, em uma mutação com os peixes do rio que também estão ficando esquisitos, com mais de um rabo? Ou ele foi devorado pelo monstro já formado? O diretor se inspirou em uma notícia real sobre um peixe pescado no próprio rio Han que tinha a espinha em forma de S.

Corta para 6 anos depois: um bichão horroroso que lembra os monstros da mitologia do Stranger Things (mas veio antes) surge no rio Han e faz a maior zona, matando algumas pessoas, ferindo outras. Ele tem o costume de levar corpos para uma espécie de covil (daí vem o nome do longa; ele é o hospedeiro no sentido de ser o anfitrião desses corpos). E ele acaba levando o corpo da menina Hyun-seo Park (Ko Asung), filha de Gang-Doo Park (Kang-ho Song, que você conhece de Parasita como o pai da família pobre).

Ela é dada como morta mas sobreviveu e consegue contatar a família lá do covil por celular. Agora, os Park querem salvar a menina - mas o problema é que o governo quer conter o hospedeiro de qualquer jeito, usando até arma biológica, e ele acredita que todos que entraram em contato com o bichão podem ter contraído um vírus.

Gang-Doo e Hyun-Seo

Gang-Doo e Hyun-Seo

A saga de Gang-Doo, seu pai e seus irmãos para conseguir salvar a menina passa por diversos subtextos sem ficar cabeça, entretendo. Existe o descaso das autoridades com as vítimas e os sobreviventes, a corrupção, o amigo entregando outro amigo para a justiça, o pobre que precisa se virar para sobreviver. Como contraponto temos o amor incondicional do pai e da família pela menina em perigo e um personagem que aparece pouco mas que diz tudo: o mendigo que ajuda Nam-il Park (Hae-il Park) sem esperar recompensa. Ele chega a brigar com Nam-il quando esse sugere dar uma recompensa em dinheiro.

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E aí tem a adorável parábola Okja (2017), que eu não chego a considerar um filme hollywoodiano mas é um híbrido entre Coreia do Sul com EUA que conta com superestrelas (Tilda Swinton, Jake Gyllenhaal) e atores coreanos (caso específico da menina protagonista, Ahn Seo-hyun).

Você provavelmente já ouviu alguém dizer que virou vegetariano ou vegano por causa de Okja. Faz sentido mesmo. Mas também é engraçado porque o filme, ao mesmo tempo que apresenta a sede inconsequente por lucro da indústria alimentícia, também mostra a militância vegan como ingênua e um tanto desorganizada.

Okja e Mija (Seo-hyun)

Okja e Mija (Seo-hyun)

Resumidamente: a fazenda onde Mija vive é uma das escolhidas por uma corporação para criar Okja, um dos superporcos que ela fez nascer de uma porcona mãe. Para a empresa, ela é a fonte de produtos alimentícios deliciosos. Para Mija, Okja é sua melhor amiga. Chega a hora da Mirando Corporation pegar Okja, que já está bem enorme, para um concurso de o maior superporco. Ela deve ganhar. Mas Mija não se conforma e parte em uma aventura para salvá-la, mesmo que seu avô diga que Okja foi criada com um destino pré-estabelecido: morrer e virar comida. Para ajudá-la, surgem militantes de um grupo que luta pelos direitos dos animais.

No palco com o inimigo: Lucy Mirando (Swinton) e Mija. Esses looks à moda coreana são nada menos que… Chanel. Tá, meu bem?

No palco com o inimigo: Lucy Mirando (Swinton) e Mija. Esses looks à moda coreana são nada menos que… Chanel. Tá, meu bem?

Com um enredo envolvente mas bem simples, o filme se move no amor de uma criança pela sua amiga. E a gente fica convencido desse amor porque Okja é de fato muito carismática, com olhos expressivos, fofa tal qual um Totoro realista. Aí está o segredo e também a sina da produção: então só dá para deixar de comer carne pela empatia? Não é o princípio que faz Mija entrar em ação.

Entendi que todo mundo gostou da interpretação de Gyllenhaal no filme. Achei meio exagerada demais, histriônica. Até funciona, mas sei lá, né?

A melhor cena do filme: a perseguição no centro de compras! Kkkkkkkkkk

A melhor cena do filme: a perseguição no centro de compras! Kkkkkkkkkk

Uma das coisas mais instigantes para mim é que, depois de O Hospedeiro e Okja, Bong tenha feito um filme chamado Parasita no qual… não existe um monstro. É como se agora ele reconhecesse que os maiores monstros somos nós mesmos. Sem metáforas, mais realista. Você pode ler mais sobre o que achei de Parasita nesse post aqui.

Pintaram rumores sobre uma sequência de O Hospedeiro mas faz tempo. Nada aconteceu desde então. Acho difícil que aconteça - mesmo sem Joon-ho Bong. Mas eu queria ver? Olha, até queria! kkkkk

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Scarlett Johansson falou sobre a sua tendência de pegar papéis de minorias - e devia ter ficado quieta...

A gente gosta da ScarJo. De verdade. A gente adora desde O Encantador de Cavalos até Match Point, passando por Ghost World - Aprendendo a Viver (mas, OK, confessemos, a gente prefere Thora Birch em Ghost World). E tem Encontros e Desencontros. E a voz dela em Her. E a Lucy, e a própria Viúva Negra.

Mas aí teve A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell e ela era uma branca fazendo uma personagem em teoria asiática e todo mundo viu e todo mundo ficou meio sem graça, para dizer o mínimo.
Há controvérsias. Ainda mais agora que tem gente reclamando porque a nova Pequena Sereia vai ser Halle Bailey, uma negra. Uma das respostas mais usadas para o povo parar de ser otário é o fato de que as sereias são seres mitológicos portanto não são automaticamente ruivas - sorry, ruivas. Em suma: sereia não existe, é um ser imaginário, então não tem cor de pele certa, taokei? Esse texto da coluna da minha amiga Flavia Gasi fala bastante sobre isso, exemplificando lendas de sereias de diversas partes do mundo, do Japão a Mesopotâmia passando por, adivinha só, o continente africano.

Mas se a gente disser isso, a personagem Mira Killian de Ghost in the Shell, uma ciborgue, era japonesa no desenho original. Mas pode não ser no live action. Ciborgues existem de todas as raças no imaginário, certo?
Ao mesmo tempo, a importância da uma maior representação de minorias no cinema esbarra nisso. Se for para substituir por um branco, não conte comigo para nada; se for para substituir por um não-branco, conte comigo para tudo.

Aqui vemos Scarlett querendo o papel de Pequena Sereia - brincadeira, é ela em Ghost in the Shell

Aqui vemos Scarlett querendo o papel de Pequena Sereia - brincadeira, é ela em Ghost in the Shell

No mesmo caso da Pequena Sereia, parece que a vilã Úrsula vai ser interpretada por Melissa McCarthy. Em Descendentes 2, parte da franquia da Disney que mostra os filhos de vilãos (e de mocinhos também), aparece a filha de Úrsula, Uma, interpretada por uma negra, China Anne McClain - aliás, charmosérrima, uma das melhores atrizes do filme.
Úrsula é negra? Úrsula foi inspirada em uma drag queen famosa, Divine. Úrsula é uma drag queen?
A cantora Lizzo já disse publicamente que queria ser a Úrsula.
#teamLizzo (Melissa, adoro você, acontece)

China Anne McClain como Uma em Descendentes 2

China Anne McClain como Uma em Descendentes 2

Esse post da Variety de 2017 fala sobre a reação da organização Media Action Network for Asian Americans (MANAA) a respeito da ScarJo dizendo que ela "nunca iria se esforçar a interpretar uma pessoa de uma raça diferente, obviamente” no programa Good Morning America na época do lançamento do filme. A resposta da MANAA? “Ela está mentindo". No mesmo post também são citados outros whitewashings como o de Tilda Swinton em Doutor Estranho (o ancião é tibetano nos quadrinhos) e o de Speed Racer (com Emile Hirsch no papel principal).

Essa fama de ScarJo ficou tão, digamos, fétida que virou um meme.
Aí, no ano passado, a atriz foi cancelada (é assim que se diz agora, né?) quando surgiu a notícia que ela iria interpretar o homem trans Tex Gill, que virou uma espécie de mafioso do ramo das massagens nos anos 1970 em Pittsburg e cuja história real ia virar o filme Rub & Tug. Foi tanto backlash que ela saiu do projeto.

E aí veio a entrevista para a revista As If.

“As if I would keep quiet!"

“As if I would keep quiet!"

Sobre tudo isso, Scarlett diz o seguinte na entrevista para a publicação:

You know, as an actor I should be allowed to play any person, or any tree, or any animal because that is my job and the requirements of my job. I feel like it’s a trend in my business and it needs to happen for various social reasons, yet there are times it does get uncomfortable when it affects the art because I feel art should be free of restrictions. I think society would be more connected if we just allowed others to have their own feelings and not expect everyone to feel the way we do.
— Scarlett Johansson para As If

Ó lá a branca fazendo branquice, né?

Vamos começar da infeliz comparação com árvore e bicho - a gente sabe que ela já fez o papel de uma voz criada por inteligência artificial em Her mas, amore, acho que quando você é perguntada sobre representação asiática e trans, é melhor você escolher outras palavras.
Mas, acima de tudo, só faltou ela dizer que cansou de mimimi e que o politicamente correto está matando a arte, né?
Aiai, que morte horrível.

Bom, um representante foi correndo na Entertainment Weekly para tentar corrigir o negócio. Aquele papo: editou por cliques, tirou do contexto patatipatatá. Olha aí o comunicado publicado:

The question I was answering in my conversation with the contemporary artist, David Salle, was about the confrontation between political correctness and art. I personally feel that, in an ideal world, any actor should be able to play anybody and Art, in all forms, should be immune to political correctness. That is the point I was making, albeit didn’t come across that way. I recognize that in reality, there is a wide spread discrepancy amongst my industry that favors Caucasian, cis gendered actors and that not every actor has been given the same opportunities that I have been privileged to. I continue to support, and always have, diversity in every industry and will continue to fight for projects where everyone is included.
— Scarlett Johansson para o Entertainment Weekly

O artigo completo está aqui.

Particularmente não gosto da cultura do cancelamento. Mas também acho que você precisa tomar cuidado com as suas escolhas. Não acho que ela pode falar que tem noção do seu privilégio dibowas, sendo que chegou a aceitar ambos papéis e um deles saiu concretamente (e o outro provavelmente teria saído não fosse o backlash).

E antes que algum nerd bobo venha com graça, uma coisa é uma mulher cis branca fazer um papel de uma asiática ou de um homem trans. Outra é ela fazer o papel de uma russa branca. É bem diferente!

(E isso me lembra a crise da falta de diversidade nas modelos da Victoria's Secret; com a contratação da ruiva Alexina Graham como uma das novas angels de 2019. Ela é a primeira angel ruiva e foi anunciada assim - não estou brincando. Para a Glamour UK, ela disse: “I think for me being a red head VS Angel means I get to put red heads out there more. Being an angel is part of having that media outreach so that I can say to young red head kids, ‘you can do anything you want! Nothing is impossible!" Juro que não estou tirando do contexto, você pode ler o artigo inteiro no link…)

Bom, para finalizar, um pouco dele, o nosso tão maltratado HUMOR: