Hebe era tudo, e você nem concordava com tudo o que ela dizia
Fui assistir Hebe: A Estrela do Brasil e me surpreendeu. Trata-se de um trecho da vida da apresentadora e não sua vida inteira, e é um trecho que de alguma maneira mostra que o Brasil não conhece sua própria história, porque se conhecesse enlouquecia: ela está se repetindo sempre.
Como ela própria disse ao vivo e a atriz Andrea Beltrão repete em cena (em interpretação, diga-se de passagem, muito muito boa): a Hebe não é de direita, a Hebe não é de esquerda, a Hebe é direta. Mas é mentira: ela era de direita sim. É só olhar a coleção de joias para concluir que comunista a apresentadora não era; votava no Paulo Maluf (era sua amiga pessoal). Mas ao mesmo tempo era de uma espécie de "direita esclarecida”, se me perdoam a expressão idiota: defendia os direitos LGBTQ+ (e gostava de provocar os conservadores nesse sentido) e tinha uma certa compaixão religiosa com os menos favorecidos. Não dividia o dela, mas não nasceu rica, portanto sabia o que era ser pobre e se compadecia.
Esse híbrido de Eva Perón e Oprah sempre me instigou. Mamãe conta que teve uma época, quando guaraná tinha tampa de rolha, que Hebe ainda era uma aspirante a artista e morava, adivinha onde? Em Pinheiros! Mas Pinheiros não era o bairro hipster-chic que é hoje. E a Hebe ficava em uma daquelas casinhas onde hoje é a Eric Discos, sabe? Mamãe morava perto, num sobrado com vovô, e a casa dela já tinha telefone; a da Hebe não. Adivinha onde a Hebe fazia ligação?
(E sim, ela ainda era morena)
Aí, muito tempo depois, numa noite muito doida de desfile do Ricardo Almeida no MASP na qual certo ator global passou a mão no meu rosto e me paquerou (?!?), estávamos eu e the one & only Antonia Petta fazendo a cobertura do evento para o site da Lilian Pacce. Detalhe: Antonia entrevistava e EU fazia as fotos. Risos. E de repente, momento de tensão: a Hebe vem. Precisamos falar com a Hebe.
Sim, eu já fotografei a Hebe.
Também lembro direitinho do momento em que soube que a Hebe morreu. Foi num sábado ou domingo, eu estava visitando a Bienal de SP com meu marido e vimos nas redes sociais. Não era meu plantão. Meu marido diz que não gosta mais de ir na Bienal porque tem essa lembrança ruim.
Voltando ao filme, destaques:
. Sou suspeito para falar, mas minha amiga Renata Bastos está ARRASANDO no papel de Roberta Close. Sorry not sorry!
. Outras duas que arrasam são Cláudia Missura, que eu amo em Domésticas (2001) no papel da Railde, como Nair Bello e Karine Teles como Lolita Rodrigues. Karine, aliás, é a rainha do cinema nacional e ninguém percebeu ainda, né? Ela é a forasteira de moto em Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles; a Irene de Benzinho de Gustavo Pizzi; a dona da casa Bárbara em Que Horas Ela Volta? de Anna Muylaert; a Angela do polêmico Fala Comigo de Felipe Sholl… E para quem só assiste TV, ela era a Sumara que foi enganada pela personagem Atena de Giovanna Antonelli no começo de A Regra do Jogo, lembra?
As amigas Nair e Lolita só aparecem em uma cena do filme, infelizmente, mas pelo menos é uma cena boa.
. Vai ter série, viu? Se o filme é só um recorte, parece que a série, que deve passar na Globo em janeiro, traz a história da apresentadora desde a infância até a morte em 2012 por conta de um câncer. Quem ainda deve aparecer é Heitor Goldflus como Jô Soares e Camila Morgado como Rita Lee (ou seja, vai ter selinho!). E provavelmente mais cenas de Lolita e Nair com Hebe - se vai ter Jô Soares vai ter essa cena abaixo, né?
Assiste de novo, faz um bem enorme!
Hebe era cheia de problemas no que diz respeito a posicionamento político, contradições. Era humana. Em tempos de dicotomia, de fortes disputas, de "ou você escolhe o meu lado ou você é meu inimigo", Hebe ocupa áreas cinzas, mostra que não existe 8 ou 80. Foi censurada mesmo após a ditadura (o filme mostra). O povo chamava de cafona, de alienada. Já li a biografia escrita por Artur Xexéo na qual ele explica todo o backstage da sua ida para o Roda Viva, ela chocada por ser convidada para um "programa de intelectuais", de gente importante.
Quem será que Hebe apoiaria hoje? Será que ela declararia seu voto? Será que ela daria conta das declarações homofóbicas registradas em vídeo do nosso atual presidente?
Saudades de quando a gente era mais complexo.