Wakabara

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Preciso falar do desfile da Flavia Aranha mesmo que ele tenha sido uns borrões pra mim

Não quero me estender muito nessa introdução, mas esse SPFW N47 como um todo e especialmente o fim dele foi algo muito catártico e difícil pra mim. Só para explicar por alto o que aconteceu, eu já sabia que ia sair do site da Lilian antes da morte do Tales Cotta, no sábado. Pareço (e realmente quero parecer) muito forte e seguro mas desabei - motivo pelo qual tive que colocar os óculos escuros que estavam na minha pochete no desfile da Flavia Aranha. É que eu não parei de chorar, já estava sentado e com o vídeo de introdução rolando quando percebi que isso estava acontecendo, e para tentar não chamar tanto a atenção foi o que me ocorreu. Só que o pior de tudo é que eu, que gosto de procrastinar com algumas coisas, não mudei a lente desses óculos específicos até hoje, então assisti ao desfile míope, chorando, tudo borrado, com a cabeça na lua.

E ainda assim sei que o desfile foi maravilhoso, pois de qualquer forma vi alguma coisa; pois vi fotos; pois fui no backstage antes e conversei com a Flavia. Ele é o resultado de um trabalho que começou há 10 anos, pioneiro em moda sustentável com um belo design, o resultado de várias parcerias e várias descobertas da estilista ao longo desse tempo.

Foto do Zé Takahashi / Ag. Fotosite - Fonte FFW

Ao contrário do que pode parecer, entrevistei a Flavia poucas vezes, talvez duas, antes dessa no backstage do SPFW. Mas uma delas é uma das minhas entrevistas preferidas - sobre o então projeto de uma lavanderia-tinturaria na qual os processos naturais poderiam ser colocados em prática com escala (ou seja, em uma quantidade bem maior e mais rapidamente). Leia aqui no site da Lilian Pacce.

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A passarela dessa estreia no SPFW foi feita assim, circular. O círculo foi um símbolo constante em outros desfiles do evento - em especial o da Lilly Sarti (leia sobre no site da Lilian). Toda vez que penso em círculo nesse contexto mais simbólico e artístico, penso nas obras da Tomie Ohtake.

Sem título (2012), da galeria Nara Roesler

Pra mim, Tomie também pintava círculos nessa procura pelo simbolismo universal dele, que perpassa várias culturas. Círculo é unidade e coletividade, uma forma sem arestas. Penso também nas danças circulares, no David Bowie com o círculo dourado na testa, em como a gente escutava música até bem pouco tempo atrás (os discos, do gramofone ao laser disc).

Para Flavia, também são vários os significados: círculo de conversa, economia circular, um lugar em que só existe primeira fila e em que todos são importantes sem primeiro nem último, o olhar o desfile e também o outro. Na moda, ela incluiu bastante godês nas modelagens - para quem não sabe, a saia godê é a que sai de um círculo com um furo no meio, grosso modo.

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Antes, Flavia só desfilou no evento Ecoera, cerca de 8 looks, algo bem menor. Agora são 28. “A Mercedes [Tristão, assessora de imprensa] plantou essa semente, dizendo que a marca precisava dar esse passo no sentido da imagem de moda. Mas passei muitos anos organizando os processos, a gestão da empresa, pra mim é muito importante que isso seja viável como negócio, não dá pra falar de sustentabilidade só na imagem. Fui protelando esse caminho, mas há uns dois anos a Mercedes começou a conversar com a Graça [Cabral, da Luminosidade, que organiza o SPFW]. Quase resolvemos desfilar antes, achei pouco tempo… E nessa edição deu certo.”

Flavia teve um mês para fazer tudo - pesado, mas ao mesmo tempo parece que essa década anterior sedimentou certezas e deu segurança para ela já saber melhor o que queria concretizar. “Queria esse espaço subjetivo para falar sobre coisas que você não consegue expressar na loja, é tanto o meu processo pessoal quanto resultado da maturidade da marca.” Ela explica também que a criação rolou de maneira bem diferente, tirando-a da zona de conforto, e abriu espaço para coisas que no dia-a-dia da gestão ela acabava deixando de lado.

O tema mistura pau-brasil, ancestralidade e identidade do país.

Flavia começou fazendo experimentações na cartela de cores no tingimento com o pau-brasil, misturando-o. O vermelho vira bege com ácido cítrico, com outros componentes ele vai para o vinho. Depois ela acrescentou urucum e crajiru, formando um triunvirato nativo brasileiro e acrescentando a questão indígena. Chamam a atenção pinturas manuais, impressão botânica e os tons mais vivos. Na dupla de fotos acima, o que vemos é impressão de araucária na organza.

Tem também: seda com elastano do Casulo Feliz, enfeites de antúrios de cerâmica, amarrações e torções. Tudo belo. “É um reencontro com a minha manualidade”, ela diz.

Acessórios de quartzo rosa e cristal - Flavia vem estudando astrologia. Segundo ela, “quartzo rosa é amor, energia, uma força do ritual, do feminino, dos amuletos”. Foto: Zé Takahashi / Ag. Fotosite (detalhe)

Flavia contou para mim que já está conversando com a Castanhal, companhia têxtil que trabalha com malva e juta, para desenvolver um fio melhor, mais macio, para o uso em vestuário. Gente que faz!

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Acho que deu para entender porque eu decidi escrever sobre o desfile da Flavia mesmo sem ter visto direito, né?
No fundo, acho que vi direito, sim.

Você gostou de mais alguma coisa do SPFW? Adorei Aluf, João Pimenta, Handred, Lenny Niemeyer e Led (os links levam para os textos que fiz no site da Lilian)! E merece menção também os outros jovens designers que participaram dessa edição - marcas independentes, estou com vocês. ;)