Wakabara

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A voz delas – na música: Veneno, Close, Rogéria, Valéria

Você já viu a série que todo mundo comenta mas que a HBO está bobeando em não trazer logo para o Brasil? Estou falando de Veneno, que conta a história real de Cristina Ortiz Rodríguez, mulher trans que virou uma celebridade pop na Espanha ao ganhar destaque na TV no programa Esta Noche Cruzamos el Mississipi.

Não é à toa que quem viu não para de falar dela. Mesmo quem não conhecia La Veneno fica vidrado – meu caso. A série acerta ao misturar a linha do tempo entre infância, adolescência e os picos da carreira dela com os anos 2000 e seu encontro com Valeria Vegas, uma jovem jornalista que começa a transicionar depois de conhecê-la ao vivo e que acabou escrevendo a biografia dela, ¡Digo! Ni puta ni santa. Las memorias de La Veneno, o livro que se transformou na série.

Outro acerto: todas as personagens trans são interpretadas por mulheres trans. Inclusive Cristina em si, que fora sua fase criança e adolescente, é encarnada por Jedet, Daniela Santiago e Isabel Torres. E uma curiosidade: a grande amiga de Veneno, Paca La Piraña, é interpretada pela própria!

Cristina infelizmente morreu em 2016, pouco tempo depois do livro de Valeria ser lançado.

Valeria Vegas e Cristina Ortiz Rodríguez no lançamento do livro

Para quem gostou da série, a boa notícia que li por aí é que vai existir uma segunda temporada da série – isso se o meu espanhol funcionou e leu direito… Risos. E para quem gosta de música: assim como muitas pessoas que ficavam famosas na época, La Veneno acabou se aventurando como cantora. Gravou umas coisinhas.

Veneno pa tu Piel é o grande hit – um poperô malandro. Eu gosto. Também tem El Rap de la Veneno, com uma base bem chupada de Robin S., no Spotify:

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É um pouco inevitável para o brasileiro fazer um paralelo entre Veneno e Roberta Close, apesar das mil diferenças: um pouco de época, muito de país e de discurso. Close era maliciosa mas não tão desbocada, que eu me lembre nunca falou de prostituição como a espanhola. Em torno de Roberta, a curiosidade girava no fato dela ser uma mulher belíssima – a fetichizaram, tornaram-na exótica. Saiu em fotos eróticas, virou mito sexual.

E virou música.

Aiai. Por onde começo?

Bom, era 1984. Foi boa a intenção, Erasmo Carlos, mas a música insiste em afirmar que tem algo “errado” com Roberta, que “não fosse o gogó e os pés, a minha lente tava na dela". Apesar de exaltar a beleza, bem… tudo errado.
Uns anos mais tarde, na mesma década, a própria Roberta Close gravou uma música de A. Lemos, Gabriel O’Meara (que já tinha feito coisas gravadas pelo próprio Erasmo e por Sandra de Sá, na época só Sandra Sá) e o Sergio Motta (que, apesar de estar nos créditos, imagino que só tenha produzido, pois era mais especialista nisso). Sou Assim é bem menos cancelável que a homenagem de Erasmo, além de ser charmosa, didática e muito pop:

Adoro esse monólogo no meio de Sou Assim: “É isso aí, esse é o meu recado. Eu sou assim, é, gatinho, vamos nessa, tá? Vem, vem chorar na rampa [raba? ramba? sei lá], eu e você! E eu amei, é, eu sou a gatinha, eu sou a gata, miau, miau, tá? Miau pra todos! Kisses, kisses, bye bye!"

Perfeita. Miau pra todos!

Mas que tal voltar ainda mais pra trás? Ou, se preferirem, vamos pra frente, para 2016, quando foi lançado o Divinas Divas.

Esse documentário dirigido pela Leandra Leal é estonteante e necessário. Ao contrário de outras diretoras que se inserem no contexto do seu doc de uma maneira um tantinho forçada (ops, falei), Leandra herdou o Teatro Rival e parte desse fio de narrativa. O Rival foi palco de teatro de revista com as artistas trans daquela época, em que ninguém chamava de trans e todo mundo chamava de travesti ou transformista. Esse local de alguma maneira se atreveu a ser um oásis de liberdade mesmo durante a ditadura militar. O filme então une esse grupo formado por essas artistas que fizeram parte daquele momento: Rogéria, Divina Valéria, Jane di Castro, Eloína dos Leopardos, Fujika de Halliday, Brigitte de Búzios, Marquesa e Kamille K.

Rogéria, a gente sabe, tem esse disco aqui:

Mas é tipo podcast kkkk Uma peça gravada. Não era música. Saiu em 1980.

De qualquer forma, Rogéria foi a mais pop de todas. Participou de novela da Globo, de filmes, se apresentou no Rival. Ela mesma dizia que era a travesti da família brasileira.

Mas hoje eu queria terminar falando de Divina Valéria.

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Divina Valéria segue firme e forte, amém, e sempre gostou de cantar, não tinha isso de dublar. Ela começou sua carreira em 1964 em boates do Rio. Em 1966 (ou 1964? ou talvez 1967? as datas variam), seria criado o espetáculo Les Girls, dirigido por Mário Meira Guimarães e com músicas e letras de João Roberto Kelly. Encenado na boate Sótão na Galeria Alaska (a Galeria do Amor da música do Agnaldo Timóteo, e sim, significa…), Les Girls trazia não só Divina Valéria como Rogéria, Marquesa… Foi um estouro. Todo mundo queria ver as travestis do espetáculo.
O que pouca gente sabe é que Les Girls também rendeu um compacto para Divina Valéria com as músicas que ela cantava no show. Já encontrei o compacto inteiro no YouTube mas ele sumiu – sobrou essa faixa com um medley de sambas, e só por ela, meu bem… Você vai entender porque eu quis falar disso:

Bom, pula o fato do artigo estar errado no título – é sempre A travesti, tá, amizades?
Mas veja bem. A sequência é de:
Ataulfo Alves com Paulo Gesta, Zé Keti, Newton Chaves, Vinícius de Moraes com Tom Jobim, Zé Keti de novo, Cartola, Monsueto, Luiz Reis com Heraldo Barbosa.
Chora no bom gosto, chora no talento.

Falando nele: Newton Chaves morreu de covid-19 faz algumas semanas. Uma tristeza.

Queria tanto esse disco.
Viva a Divina Valéria!

E claro, viva Veneno, Roberta, Rogéria!

Bônus: Amanda Lepore também tem toda uma discografia, viu?

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