Akihiro Miwa icônica demais
Nossa senhora, isso que é MUSA.
Assisti ao filme Kurotokage com Akihiro Miwa, a versão de 1968 (existe uma de 1962), e depois Kuro Bara no Yakata, de 1969. É surreal como, no fim dos anos 1960, o Japão cheio de regras em relação a gênero apresentaria uma transformista como musa.
Ah, sim: Akihiro Miwa não é exatamente uma mulher trans. No lugar de determinar seu gênero, ele parece achar mais interessante a via do não-binário, do constante passeio entre gêneros. E isso parece que atrai ainda mais a atenção (e o deslumbramento) dos japoneses!
Mas vamos voltar para começo, quando Miwa ainda era artista de cabaré e, em 1957, gravou Me Que Me Que, um clássico da música francesa originalmente lançado por Gilbert Bécaud naquela mesma década.
A versão em japonês, malandrinha, fez sucesso. Miwa bombou. E parece que foi nessa época que o escritor Yukio Mishima, um machão de direita que surpreendentemente tinha muita sensibilidade nas suas obras, elogiou Miwa, dizendo que era como um “uma beleza dos céus", ou seja, um anjo. A comparação faz sentido no que eu já pesquisei e ouvi dizer sobre a homossexualidade japonesa. Acho que vale abrir um parênteses aqui para falar sobre isso – e um pouco mais sobre Mishima também.
Os rapazes prostitutos do Japão antigo
O livro O Belo Caminho: História da Homossexualidade do Japão, de Gary P Leupp, explica bem que a homossexualidade não é algo "novo” ou "que os brancos trouxeram” para o Japão. Longe disso. O shudo, que se refere a uma estruturação específica de prática homossexual um pouco parecida com a da Grécia antiga, em que existe a figura do homem mais velho mentor e deflorador e o rapaz jovem, passivo, inocente e aprendiz, foi uma realidade em monastérios budistas com presença exclusiva masculina, e também nas relações entre samurais. Para mim também tem a ver com uma relação de dominação e submissão que, pelo pouco que sei e posso estar falando bobagem, é recorrente na sexualidade nipônica.
Com o tempo, meninos começaram a virar michês para sobreviver, muitos deles relacionados ao teatro kabuki, uma tradição dramatúrgica que não permite atrizes. Esses atores especializados em papéis femininos atraíram fãs e cobravam por sexo, alguns viravam amantes de homens ricos. Depois, existiram bordéis que já nem disfarçavam sob a fachada do teatro, só com rapazes. Eles se vestiam e se enfeitavam como moças.
A imagem do rapaz afeminado e submisso não ficou no passado. O filme Morte em Veneza (1971) foi uma grande referência no Japão – a figura de Tadzio (Björn Andrésen, que para quem não sabe é o ancião do sacrifício no recente Midsommar de 2019) era tudo que os japoneses achavam lindo. Androginia e mistério. Isso corre até os idols do j-pop, apresentados como sensíveis e com traços mais delicados, e respinga também no k-pop.
O próprio Andrésen virou uma celebridade no Japão. Quando ele visitava o país, as mulheres iam à loucura! A ponto de, bem… ele mesmo gravar músicas em japonês, tal qual um idol. Olha que loucura?
Yukio Mishima: um homossexual de direita?
Em 1951, Mishima lançou o livro Kinjiki, uma expressão que é um eufemismo para homossexualidade. Um trocadilho entre “cores proibidas” e “amores proibidos". A história, considerada autobiográfica por muitos, traz a relação entre um escritor mais velho e um rapaz jovem que confessa que vai casar com uma mulher por motivos financeiros, mas que não se sente atraído por ela nem por ninguém do sexo feminino. Críticos apontam uma misoginia forte enraizada no texto – um discurso de ódio contra as mulheres. Mas virou um clássico.
Acontece que Mishima foi casado com uma mulher, Yoko Sugiyama. E ela, por sua vez, odiava e negava os rumores sobre a homossexualidade do marido, mesmo que fosse público que ele, por exemplo, frequentava bares gays. Eles tiveram um par de filhos, inclusive.
Existe um livro não-autorizado, de 1998, de Jiro Fukushima. Ele alega que teve uma relação com Mishima em 1951. Foi um escândalo que acabou com Fukushima e a editora processados pela família de Mishima.
Mishima tentou fazer um golpe de estado no Japão em 1970. Sério. Isso porque, antes de casar com Yoko, ele quase casou com Michiko Shoda, que depois virou imperatriz porque se casou com o príncipe Akihito! A tentativa de golpe não deu certo e ele cometeu seppuku, o suicídio ritualístico japonês, aos 45 anos de idade.
Voltemos para Akihiro Miwa.
Uma baita história
Miwa nasceu em Nagasaki e, sim, estava na cidade quando a bomba atômica explodiu em 1945, quando tinha 10 anos. Como outros sobreviventes, ele sofre com os efeitos da radiação.
Ainda na época de Me Que Me Que (ou Meke Meke), saiu do armário publicamente, declarando-se homossexual. Para quem não está familiarizado com a cultura japonesa: ser homossexual afeminado no Japão contemporâneo é um pouco diferente. Existe preconceito, mas também existe uma maior aceitação – a rejeição maior acontece justamente quando você não é afeminado e, na cabeça do povo, “confunde". Celebridades homossexuais que se travestem são famosas na TV e amadas, por exemplo (é o caso de Miwa, que nos anos 2000 virou uma celebridade televisiva de muita fama).
O boom desse primeiro hit arrefeceu e Miwa ficou mais apagadinho. Seu segundo hit só viria em 1965: Yoitomake no Uta. Composta por ele mesmo, tem uma pegada bem enka na sua temática, falando do esforço do trabalhador rural e como ele é digno (pelo menos acho que é isso, me desculpem se entendi errado!).
De volta ao sucesso, Miwa lançou sua autobiografia em 1968 e começou a atuar em peças de teatro. Uma delas, Kurotokage, foi baseada em um livro policial de Ranpo Edogawa e adaptada para o teatro por Yukio Mishima. A peça já havia sido montada com outras atrizes no papel principal da bandida Lagarto Negro (ou, em japonês, Kurotokage), mas foi com Miwa que ela chegou naquele ponto sublime de petardo pop. Tanto que… virou filme!
A história é um embate entre Kurotokage, essa bandida que gosta de roubar "coisas bonitas”, e o detetive Kogoro Akechi (Isao Kimura). Miwa está simplesmente magnética, arrebatadora, com figurinos babadeiros.
Incautos podem colocar o filme naquela caixa de “o queer sempre é o vilão, o errado". Mas acredito que Kurotokage é mais que isso. Kurotokage, a personagem, é bela, hipnotizante, e se deixa levar pela obsessão por tudo que é bonito. Também não vê o mundo como binário: enxerga a beleza nos homens e mulheres. Sua própria beleza está ligada à androginia. Mais do que camp, o filme é cheio de nuances, esteticamente instigante, transbordando pulsão de morte e sexo. Para mim, um dos filmes mais legais que já vi nos últimos tempos, sem exagero.
Vou dar um spoiler para explicar uma coisa muito importante, quem não quiser saber pode pular para / SPOILER TERMINA /.
/ SPOILER COMEÇA /
A criminosa Kurotokage tem uma coleção muito, er, peculiar. São corpos humanos bonitos, empalhados. Eles aparecem no filme, em seu covil, quando ela os exibe para a sequestrada Sanae (Kikko Matsuoka), que depois se revela ser uma sósia de Sanae contratada para se passar por ela.
A curiosidade: o homem empalhado que Kurotokage beija na boca é ninguém menos que… Yukio Mishima.
É um selinho apenas, OK. Mas é babado.
Isso alimentou os rumores de que Mishima e Miwa teriam tido um caso em algum momento da vida. Miwa já chegou a declarar que "Mishima não era um homossexual de verdade". Bicurioso, então? Enfim. O artista também se colocou contra o livro de Fukushima de 1998.
Como já contei lá em cima, Mishima morreu dois anos depois do filme lançado.
/ SPOILER TERMINA /
O trabalho na imagem de Miwa como uma mulher misteriosa e sedutora é típica do filme noir, mesmo que Kurotokage não seja um noir – a relação vem da inspiração, pois o argumento vem de um romance policial com direito a um superdetetive, mas a cinematografia também ajuda, cheia de sombras, ambientes noturnos.
Também acho interessante o jeito que o detetive é construído. Akechi tem prazer em desvendar os casos. A relação dele com Kurotokage é de interdependência, com ambos precisando dessa nêmesis para existirem em sua melhor performance. Ninguém é inocente. Akechi não é um herói. Ele depende do crime para fazer o que faz da vida: desvendá-lo.
Mas Miwa assumiria um papel ainda mais misterioso em Kuro Bara no Yakata, ou Mansão da Rosa Negra: o lagarto negro agora vira uma rosa negra no filme de 1969.
A história de Kuro Bara no Yakata é de uma mulher misteriosa, Ryuko (Akihiro Miwa), que sempre carrega uma rosa inteira preta. Ela diz que, quando encontrar o verdadeiro amor, a rosa ficará vermelha. Uma coisa meio Bela e a Fera, né? Ninguém sabe do passado de Ryuko e ela atrai a atenção de Kyohei (Eitarô Ozawa), o dono da Mansão da Rosa Negra. O local é uma espécie de clube da alta sociedade, no qual Ryuko passa a se apresentar cantando e encantando (kkkkk desculpa, não resisti a essa frase feita). Os homens caem de amores, um pouco pelo mistério, um pouco pela beleza.
Homens do passado de Ryuko começam a aparecer. Eles alegam que se casaram ou que namoraram a musa, que ela os enlouqueceu ou que era má, mas seguem apaixonados. Ainda assim, Kyohei, que é casado e já tem dois filhos criados, torna Ryuko sua amante.
Tudo parece ir bem até que o filho mais novo de Kyohei, Wataru (Masakazu Tamura), reaparece. Desde o começo, fica claro pela fala dos outros personagens que ele é um rapaz problemático, ovelha negra. E adivinha? Ele se apaixona por Ryuko…
Aqui, a figura de Ryuko, apesar de ainda mais misteriosa que a Kurotokage, é menos dúbia. Ela é a vamp, a que leva os homens à ruína. O toque subversivo fica por conta dessa figura tão desejada ser interpretada por um homem: a audiência sabia, o elenco sabia, todo mundo sabia. Não é um filme tão bom quanto Kurotokage, mas gostei.
Curiosidade: o diretor de ambos os filmes é Kinji Fukasaku. Em 2000, ele fez o filme que muita gente diz que influenciou Jogos Vorazes: a fábula sinistra Battle Royale.
Miwa acabou dando um tempo nas telonas após essa dobradinha e se dedicou à carreira de cantor. Isso deu em clássicos, como isso aqui:
Em 2012, já como uma personalidade consagrada no meio artístico, Miwa se apresenta pela primeira vez no tradicional Kôhaku Uta Gassen, o festival de fim de ano transmitido pelo canal NHK. Na época com 77 anos, ele foi a pessoa mais velha a se apresentar pela primeira vez no Kôhaku. E pelo que entendo também foi o artista que apresentou a música mais longa na história do festival, que costuma ser bem rígido com o tempo de apresentação dos artistas participantes, geralmente em torno de três minutos. Olha aí:
Antes disso, Miwa dublou um personagem de anime muito querido de quem curte Studio Ghibli. É a bruxa com papeira, como diria meu marido, de O Castelo Animado!
Miwa segue vivíssimo. Vai fazer 86 anos.
Bônus: OLHA. ESSE. CLOSE.
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